quarta-feira, 29 de maio de 2019

O nome dela é Pedro e ela é um monstro

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas em pé, sapatos, shorts e criança



Ser. Homem, mulher, lésbica, gay, bissexual, transexual, queer. Humano. Ou não ser. Nada disso, nem outra coisa por oposição a qualquer uma destas definições. Já não é esta a questão. Um género para lá de regras predefinidas e que começa a se fazer sentir antes que dê jeito à sociedade, ainda na idealizada e assexuada infância. Géneros que vão sendo. Gerúndio, muito mais que definido. Infinito. Porque ela chama-se Pedro mas não lhe basta.
“Este é um texto sobre vulnerabilidade, sobre assumir fraqueza, e sobre ser uma criança paneleira. Começou com o convite de uma amiga argentina para participar no projeto Mariconcitos; a proposta era que as pessoas se debruçassem sobre as suas infâncias maricas de forma a torná-las dizíveis e a interrogá-las. Propunha-se um olhar para a memória e a procura de expressões sexuais e de género dissidentes, principalmente as afeminadas, bichas, e com especial foco nos seus prazeres e nas suas discriminações. Escrevem sobre a proposta que se trata ‘de seguir pegadas, exumar um passado vivo, abrir uma cicatriz’. Era, numa palavra, uma reflexão sobre afetos perdidos.” Dores encontradas, partilhadas em nome de um percurso que exige disponibilidade a quem o aceita acompanhar. Pedro Feijó aceitou e o título que escolheu é explícito: “O monstro maricas.” Nada mais será tão evidente.
Há cerca de dois meses, o texto foi publicado no blogue Mariconcitos e partilhado no Facebook. Foi assim que o Expresso viu o testemunho perturbador de uma criança sofrida. Na íntegra, tornou-se evidente que, no coração da fragilidade, Pedro tem a coragem de nos dizer de si. “O medo terrível de que o contar da minha história ou da minha vida seja usado para me explicar — de onde venho, o que sou, a minha natureza —, mas por outro lado, a esperança de que sirva, se me faço entender, precisamente para me desexplicar. Ou seja, do outro lado está a vontade de criar um sujeito paneleiro, um sujeito que além do mais não tem medo de instigar o conservadorismo que se faz guardião da infância (Won’t somebody please think of the children?!?) [gritaram as personagens dos Simpsons, num episódio], e de criar algo, bem no coração dessa imaginada inocência, que não é nem homem-por-vir nem mulher-por-vir, nem mesmo gay-por-vir, que é traveca mesmo, em toda a sua potência, mas que deixa por dizer aquilo em que se vai tornar, que resiste, ora aí está, à categorização e taxonomia de um pequeno-adulto.” A partir deste exercício memoralístico, o tema da identidade de género impôs-se. Havia que espalhá-lo, revelá-lo a quem, dele, pudesse tirar ilações.
São 25 anos de monstruosidade, como ele próprio assume. Passo a passo os mais de 1,80 metros de Pedro Feijó foram enchendo-se de consciência. Olhou-se de frente e encontrou nele um monstro. E, aos poucos, percebeu que só a insubmissão o levaria a algum lugar. A aberração insurrecta: “Cá está o monstro que deixei num armário, trancado a sete chaves, para que ninguém veja quem sou, com medo de ficar só. E todas sabemos, embora por vezes seja difícil admiti-lo, que um monstro é só uma criança que cresceu presa.” Abre-lhe a porta e deixa-o sair, não lhe viremos a cara.
Continua magro, moreno, impossível de não ser visto, com a sua saia estampada e brincos enormes. Vive em Lisboa e, na rua, atrai olhares curiosos, coleciona rejeições. Não se inibe, permite-se ser como quer. Ou não quer, mas como tem de ser. Há oito anos, Pedro Feijó chegou às páginas dos jornais, aluno do secundário no Camões, em Lisboa, faz um discurso retumbante contra a política educativa de Maria de Lurdes Rodrigues, à frente do então Presidente da República, Cavaco Silva, e como consequência dão-lhe um perfil no “Diário de Notícias”, é noticiado no “Público” e capa da revista do Expresso, como exemplo de ativismo político, mas à época, a sua orientação sexual não era um tema. Entra para o curso de Física, na Universidade de Lisboa, onde durante dois anos tenta compreender os sistemas científicos, sem nada de relevante descobrir. Sai e, por um ano, para para pensar, faz parte de um grupo de análise literária, “lendo como quem escreve”.
Encontra-se com Deleuze, Foucault, Barthes, Paul de Man. Depois opta pelo então novíssimo curso de Estudos Gerais, na Universidade de Lisboa. Concluído, parte com uma bolsa da Universidade de Cambridge para o que é considerado um dos melhores departamentos mundiais de História da Filosofia das Ciências. Na mala, não carrega fato nem camisas brancas, leva saias. “Foi um choque cultural, académico e linguístico, caí em depressão, fiquei seis meses de cama e arranjei um trabalho num restaurante, mas no segundo ano já estava mais habituada.” Apresenta uma dissertação de mestrado sobre bruxaria em Portugal no século XVI e, depois, durante quatro meses anda pela América do Sul, num trabalho de investigação sobre práticas queer e LGBT. “Descobri que lá estão os países com legislações mais avançadas nesta área.” Regressa a Portugal e recebe nova bolsa de estudos, desta vez para fazer o doutoramento em Berkeley, Califórnia.
DIÁLOGO NO PARQUE
O início da conversa numa tarde iluminada num dos parques de Lisboa não pode ser outro. Confrontado, Pedro olha de frente, para um segundo para pensar. Como se define? “Como paneleiro.” Mas por que utilizar uma palavra que já não se usa? “É completamente ingénuo achar que não se usa a palavra paneleiro. Usa-se. Pejorativamente. Não surge é nos espaços onde se combate a homofobia. Não há um único dia em que não a escute. Olham-me na rua, riem-se, mandam bocas, perguntam-me o que está a acontecer ao país. Reivindicar a palavra paneleiro é reivindicar as características que as pessoas quiseram higienizar no gay.” Usa a palavra por militância? “Lá por eu dizer paneleiro não significa que qualquer pessoa a deva usar em qualquer momento. Não porque seja proibida, mas porque todas as palavras ganham sentido no seu contexto e no seu uso. É diferente alguém, entre amigas ou num manifesto, reivindicar o termo paneleiro, de ouvir alguém a gritar levianamente no meio da rua. A mim, por exemplo, e apesar de reivindicar a expressão, faz-me imensa impressão o termo maricas ou mariquinhas. Conjugam em si a ofensa à homossexualidade, a correção de um comportamento que foge ao padrão masculino, o rebaixamento do ser mulher e a recusa em aceitar a expressão de vulnerabilidade. É uma palavra que uso para me pensar apenas, mas que seria incapaz de utilizar para me referir a alguém.”
Pedro pede um ponto prévio, para explicar ao que vem. “Escrevi um texto que gostaria de ter lido, que gostaria que os meus pais tivessem lido, mas não tenho pretensões de representar ninguém. Falo só por mim. E até certo ponto, por parte de mim. Se for para ser um exemplo, só no sentido matemático e esquemático do termo, de ser parte de um todo com o qual partilho características e relações, mas em mim mesma singular.” E usa saia, para provocar? “Claro que está envolvida uma intenção de provocar uma reação, mas a palavra provocação parece assumir alguma gratuitidade, como se fosse só para chatear ou só para nos fazermos notar. Não é. A provocação tem implicações que me afetam e àquelas pessoas com quem interajo a cada momento. Porque é importante confundir as pessoas, é importante que não saibam como lidar.” Há cinco anos saiu à rua pela primeira vez de saia, numa marcha LGBT. Ia em grupo e “estava a morrer de medo, mas a sensação foi brutalmente libertadora”. Atualmente, só usa calças quando não tem “forças para lidar com as agressões na rua, o que não faz da saia um porto de abrigo”.
Na partilha dos Mariconcitos vai mais longe. Atira-nos o seu combate: “Os monstros só existem em tensão, só existem em marginalidade. Desapareceram das margens dos mapas quando se navegou redondo o mundo. Ressurgiram, nascentes, nos seios das vilas europeias como presságios da fúria divina e nas marchantes bordas do Novo Mundo como símbolos de negritude e bestialidade. Foram domesticados em frascos de laboratório e ainda assim não deixaram de surgir, incólumes e mais feios do que nunca, na mesa de laboratório de Frankenstein, no ventre de Mary Shelley, no parlamento de monstros de Wordsworth. Tentou-se criá-los, a época da ode à teratogenia elogiada por Darwin, mas ainda assim não nos espremeram do desconforto. Ressurgiram fantásticos, aliens, mitopoéticos, ciborgues, animados, conhecidos pelas ciências sociais e psicológicas mas sempre como desvios, aberrações, nojentas, degeneradas.”
A contenda não é só dele, é nossa, de espanto, e de Pedro, quotidiana. Se é difícil? Deve ser. Quando Pedro contou em casa, a mãe, psicóloga clínica, chorou e quis saber onde havia errado, e o pai, biólogo, silenciou. Que dificuldades ainda tem? “Nada que se relacione com uma busca da identidade. Aliás, a única dificuldade é conseguir continuar a fugir-lhe. A minha dificuldade é com isto que falo no texto: da relação entre uma vontade que me trespassa e uma imagem e ideal a que os meus outros me querem fundir.” Como lidar com essas agruras? “Procuro um lugar de desconforto confortável, passo a vida a mostrar que tenho força, alguma superioridade, acima das agressões e da mesquinhez, foi a maneira que encontrei para sobreviver.”
O que é isso, então? “Uma militância experimental, uma forma diferente de fazer política, uma recuperação do movimento feminista em que o pessoal era político. Porque a minha primeira luta foi comigo mesmo.” Mas como ser alguém que carrega em si um monstro? Prometendo sê-lo ainda mais: “Na minha estória, como na história do Homem que as monstras sempre vêm pôr em causa. Também elas espreitam dos frisos das igrejas e das margens dos textos proibindo que me cale a mim própria contando uma estória final; as estórias são sempre provisórias, são sempre só um entendimento, são sempre precárias, e só sedimentam quando, por medo, tentam matar monstros. Se há alguém a quem se possa confiar a produção autobiográfica é aos monstros: é difícil a universalidade quando se trata de uma escrita conduzida pela monstruosidade, de uma teratografia. A minha mariquice, ser maricas, medroso, veio o orgulho raptá-la à vergonha. O monstro cá continua, por vezes aterrador, amedrontando. Mas transformou-se também numa potência de vida que a cada dia me desafia a experimentar o desconfortável, a devir mais paneleira, mais incómoda, menos domesticável. O mesmo monstro maricas que me amedrontava transformou-se numa enorme criatura insurrecional.”
O MONSTRO NO RETRATO
“Nós exigimos mais dos monstros, pedimos-lhes, justamente, que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem permanentemente as nossas mais sólidas certezas; porque necessitamos de certezas sobre a nossa identidade humana ameaçada de indefinição. Os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser.” Passados 22 anos, as palavras do filósofo José Gil parecem clarividentes, à espera de quem as queira ler no livro “Monstros”. Pedro leu-as. Assim como outras passagens — “[o monstro] é o Mesmo transformado em quase-Outro, estrangeiro a si próprio. É uma demência do corpo, uma loucura da carne.” E o estudioso que privou com Jules Deleuze e Félix Guattari e que assistiu à promessa da revolução homossexual cristalizar-se lê agora a confissão de Pedro e nele encontra “uma grande novidade para Portugal”. Porque “se estamos avançados do ponto de vista jurídico, ainda estamos muito atrasados do ponto de vista comportamental”.
O filósofo alerta, contudo, que o que de mais relevante pode surgir deste texto resulta do que lá não está explícito: “A rutura com a noção de identidade.” Uma promessa que surgiu pela primeira vez há cerca de 40 anos, recorda José Gil. “O ideal revolucionário homossexual falhou e ainda está por estudar o que aconteceu nos grupos de extrema esquerda que se enquistaram numa lógica mortífera, um dilema que ainda não está resolvido.” E o texto terá tanta mais relevância porque surge num momento em que “a moral social está a regredir na sua aceitação e permissividade, obrigando-nos a defender posições antiquadas”. Como a ousadia do jovem em abordar a sexualidade infantil, invisível na sociedade portuguesa: “É incrível como não se olha para o erotismo da infância. É como se Freud nunca tivesse existido.”
Pedro Feijó, ainda à conversa com o Expresso no parque, pede a palavra para explicar que “as opressões são sistémicas e que é fácil acusar alguém de ser homofóbico, o difícil é perceber que cada um também o é e que estes são processos marcantes na educação e nas relações sociais”. Assume que as crianças são uma personagem central nesta discussão. “Não conseguimos lidar com a ideia de que a criança pode ter sexo”, atira, dizendo ainda que “a infância continua a ser imaginada como um estágio pré-político e que só assumindo parâmetros predefinidos de sexualidade será possível chegar-se a um adulto saudável”. Pedro diz que a sociedade acredita que as crianças “têm de ser protegidas, pensadas como algo puro”, mas que “as nossas infâncias estão imbuídas de desejo” e que esta proteção “é de um paternalismo e de uma condescendência brutais”. Defende mesmo que “não há nada pior do que fingir que as crianças não sabem o que estão a fazer”, para confessar: “Tudo o que eu fiz, sabia que estava a fazer.”
Mas ao recuperar a sua primeira experiência homossexual — não tinha ele mais de nove anos —, as memórias de Pedro tocam a ferida oculta: “Na verdade, mais do que sexuais, eram pornográficas. Íamos para casa dele, entrávamos em sites porno, e imitávamos um no outro aquilo que víamos na net. Os gestos, as posições, a expressão do prazer. Era um espaço tão excitante quanto arriscado; mas tratava-se da reprodução de imagens, não do que elas pretendiam significar.” Para José Gil, este é, contudo, “um relato que está a mais, é enigmático ao exigir uma narrativa que dê sentido a factos da infância, alguém que diz que não nasceu gay, mas que afirma um devir homossexual e monstro, afirmando um certo tipo de identidade que é a sua” e, atento, o filósofo reconhece que o texto acaba com uma promessa que não se sabe se será concretizada. Afinal, o que quer realmente Pedro Feijó?
AINDA NO ARMÁRIO
Confrontada com o texto de Pedro Feijó, a investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra sublinha a importância de se aceder a um relato como o dele, com detalhes que escapam aos inquéritos quantitativos: “O texto acrescenta muito à discussão da identidade de género em Portugal, onde ainda é raro alguém assumir as suas dificuldades. Aqui a identidade de género continua a estar no armário, apesar das mudanças legislativas. Não é para sossegar que ele escreve, é para questionar.” Coordenadora de uma equipa multidisciplinar e transnacional (espanhóis, portugueses e italianos), a socióloga Ana Cristina Santos recebeu um financiamento de 1,4 milhões de euros do European Research Council para “contribuir para a inovação jurídica, política e cultural no campo da cidadania das pessoas LGBT”, cujo objetivo é desconstruir estereótipos, expondo à sociedade a sua obsolescência. O projeto “Intimate”, que começou há cerca de um ano e se estenderá até 2019, pretende mesmo flexibilizar os modelos jurídicos, conformando-os às novas realidades.
A fotografia de um miúdo enfeitado com os colares da mãe agarra a investigadora. “É uma imagem poderosíssima, não pode ser mais explícita. Todo o texto é um revisitar a infância, à luz da memória do adulto e mostra como o processo de socialização é profundamente normalizador e está assente no binarismo de género. Mas as escolhas obrigam a violência e o adulto revisita o passado, confrontando-se com a perplexidade de uma criança que começa a perceber que não encaixa. E o texto leva-nos a refletir sobre que mensagem estamos a transmitir às nossas crianças. Porque esta história não termina com o Pedro: a infância dele provavelmente reflete a de muitas outras crianças hoje.”
Uma “identidade que ultrapassa a fronteira do género” foi o que Sofia Aboim, socióloga do Instituto de Ciências Sociais (ICS), encontrou nas palavras de Pedro. “O armário dele não é só a homossexualidade, há ali toda uma criatura que não tem encaixe, que ultrapassa a questão da sexualidade, ele é tudo o que desencaixa.” E a investigadora encontra “uma abordagem política, inseparável de um elemento pessoal e transgressor, criador de novas possibilidades, em que a ideia de monstro não é apenas negativa mas uma figura revolucionária”. Ideias que não são exclusivas porque, como explica, “cada vez mais os jovens têm acesso a estas narrativas, que chegam das universidades ou de grupos ativistas e é percetível que está a crescer o movimento das pessoas não binárias”. A investigadora diz que a onda vem ganhando relevo, em Portugal e no Brasil, composta por “pessoas mais radicais, filiadas ao ideal anárquico”.
Outro contributo que Sofia Aboim encontra no texto é a capacidade para “transformar insultos em figuras emancipatórias”, sublinhando que esta forma de estar vem romper com a imagem do gay normativo, que segue o modelo, na homossexualidade, o comportamento heterossexual. Um posicionamento tão mais relevante quanto tenso é o momento atravessado pelo mundo, confrontado com o recrudescimento do conservadorismo, por um lado, e a progressão da reivindicação de discursos alternativos, por outro, com impacto na legislação. “Um momento revolucionário na questão do género, que não vai ficar por aqui. Abriu-se uma caixa de Pandora”, assevera. Porque para estas pessoas, explica Aboim, “a identidade é um direito, uma questão de autonomia, que não tem de ser mediatizada pelas instituições médicas ou governativas, porque o olhar do Outro é sempre violento e estigmatizante”.
O psiquiatra Daniel Sampaio defende que “nenhuma criança tem a sua identidade completamente formada durante a infância e que o processo da formação da identidade sexual é complexo e só está completamente estabelecido na adolescência” e quando uma criança não se identifica com o seu sexo biológico abre-se “um longo processo de procura de um sentido, em que a mente não está de acordo com o sexo biológico”. Zélia Figueiredo, também psiquiatra, é responsável pelas consultas de Sexologia do Hospital Magalhães de Lemos, no Porto. Explica que “99 das pessoas” que a procuram “surgem identificadas com um género e querem fazer uma transição para outro” e que “só os muito mais novos conhecem o conceito do não binarismo e da autodeterminação de género. Fazem parte de uma comunidade que não vai às consultas e que não quer fazer uma modificação corporal. São os mais discriminados, os que vivem nos intervalos”.
Desde que a Lei da Identidade de Género entrou em vigor, em março de 2011, e até ao início deste ano, 109 pessoas com menos de 25 anos requereram a alteração de género e do próprio nome. Na Assembleia da República, duas propostas, uma do Bloco de Esquerda e outra do PAN, pretendem reduzir a idade legal exigida para que se proceda a essa mudança de 18 para 16 anos, desde que com o consentimento dos pais. O Governo avança com um pacote legislativo sobre a identidade de género. A secretária de Estado para a Cidadania e para a Igualdade esclarece ao Expresso que esta legislação não visa regular as operações de mudança de género, mas “abordar a identidade de género, atualizando a lei existente, que já está ultrapassada”. Catarina Marcelino explica que também não é o momento para introduzir o terceiro sexo ou género neutro, “uma questão ainda polémica e que nos países onde foi adotada, como a Alemanha, diz respeito às pessoas intersexo [crianças que nascem com ambiguidade dos órgãos genitais]”.
As barreiras à plena expressão destas aparentemente estranhas formas de vida continuam a ser erigidas, como muros que não travam apenas o fluxo de pessoas diferentes às várias tribos, mas também ideias e opções de comportamento. Como quando há algumas semanas foi divulgada a notícia de que os conteúdos de criadores homossexuais ou transgéneros serão filtrados no Google e no YouTube por não serem considerados “amigos das famílias”. A pergunta que fica, contudo, é: mas que famílias? Qual o espaço que sobra para os novos formatos conjugais e familiares? Sobretudo, quando se sabe que há jovens LGBTQ, como Gigi Lazzarato, — que citada pelo “New York Times”, terá 2,5 milhões de seguidores no YouTube — e que daqui para a frente terão de se contentar com o restricted mode. Mas, por mais paredes que se ergam, a tendência da fluidez de géneros parece imparável.
POR TODOS OS LADOS
2017 começou com uma capa inédita da revista “National Geographic” a estampar uma rapariga transgénero. Há poucas semanas foi a vez da “Time” dar destaque às infinite identities, em que o tema central era a crescente comunidade de pessoas que rejeitam uma sexualidade definida entre o masculino e o feminino, com exemplos como o de Miley Cyrus, assumidamente pansexual, a reconhecer que, apesar das dificuldades que continuam a existir, atualmente é possível pelo menos discutir a situação. “Antes, sair do armário era assustador”, diz a cantora de 24 anos. A revista conta ainda que o Facebook tem mais de 60 possibilidades de género registadas e que na Califórnia já é possível recorrer a um terceiro género em documentos como a carta de condução ou a licença de nascimento. Entretanto, a agência noticiosa norte-americana AP passou a incluir no seu livro de estilo a possibilidade de se utilizar o pronome they quando em causa estiver uma pessoa que não se reconhece como he ou she. E, apesar das restrições legislativas impostas pelo Presidente Donald Trump, há cidades nos Estados Unidos que estão a difundir a utilização de casas de banho identificadas como gender neutral ou all gender. Tentativas para mostrar que o género resulta de um processo de autocompreensão individual e que uma pessoa pode ser cisgénero, quando se identifica com o género que lhe é designado à nascença, ou transgénero, quando tal não ocorre e, neste caso, poderá, ou não, identificar-se com o género binário, constituindo algo mais, diferente.
Falta, portanto, ir mais longe e Pedro Feijó, em Cambridge, foi. Abordou num ensaio os otherkin, ou seja, aqueles que questionam a própria definição de ser humano e abrem espaço a quem prefere acreditar ser um animal ou uma criatura mitológica. Identificados anteriormente como casos patológicos ou meramente curiosos, estes indivíduos começam a reivindicar seriedade na abordagem deste diferente modo de ser. Somos então confrontados com a desconfortável questão: o que significa ser-se humano? No ensaio, Feijó questiona se, “seguindo a luta daqueles que se veem a eles mesmos excluídos da Humanidade, pode ser altura de questionar se durante todo o século XX os diagnósticos não tiveram o foco errado. Talvez devesse ser dito que a Humanidade é ela própria uma espécie de disforia?”
Tradutor, com Helena Lopes Braga, do livro “Manifesto Contrassexual”, Pedro Feijó parece concordar com as teses defendidas por Paul B. Preciado, filósofo espanhol, nascido biologicamente mulher há 46 anos. Para este autor, “o sexo não é a base fixa do género: é preciso olhar o corpo e vê-lo como construído; aí poderemos encontrar novos espaços de resistência”. E inspirado em autores como Karl Marx ou Michel Foucault, defende a instauração de um movimento de contestação: “A contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade.” De tal forma que, quando um corpo se apresenta ambíguo e indefinido, terá de ser normalizado sob pena de criar um desequilíbrio social. Porque as diferenças sexuais e a chamada verdade anatómica ou biológica apenas visam legitimar a organização política e perpetuar as relações de poder.
Eve Segdwick — a única autora citada explicitamente por Pedro Feijó no seu texto memorialístico nos Mariconcitos — é considerada a grande teórica da “saída do armário”. Para esta autora, cada sociedade define o que é sexual ou não e os próprios limites de aceitação ou rejeição de certas relações, a partir da sua estrutura de poder. Já se passaram 68 anos desde que o mundo ocidental ficou escandalizado quando Simone de Beauvoir assumiu no seu livro “O Segundo Sexo” que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. A autora explicou que “nenhum destino biológico, psíquico, económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. A sociedade mudou, e vai continuar a mudar, acompanhando, algumas vezes mais de perto, outras com maior incredulidade, o que investigadores e escritores trazem de novo, e revelando-lhes novidades que nem o mais ousado criador pensara.
O texto completo de Pedro Feijó pode ser lido em baixo:
O MONSTRO MARICAS
Voi ragni pelosi Vós, aranhas peludas,
Voi tassi barbassi Vós, velas-de-bruxa,
Lumache bavose Caracóis babosos
E ciechi orbettini E osgas cegas,
Restate lontani Fiquem bem longe
Dai nostri bambini. Das nossas crianças.
Voi bestie notturne Vós, bestas noturnas,
Amanti del buio Amantes da escuridão,
Voi che non dormite Vós que não dormis
Se non al mattino Até à madrugada
Vegliate sul sonno Velem o sono
Di questo bambino. Desta criança.
– adaptação da canção-de-embalar das fadas por W. Shakespeare
para o filme Io non ho paura de G. Salvatores.
Este é um texto sobre vulnerabilidade, sobre assumir fraqueza, e sobre ser uma criança paneleira. Começou com o convite de uma amiga argentina para participar no projecto Mariconcitos; a proposta era que as pessoas se debruçassem sobre as suas infâncias maricas de forma a torná-las dizíveis e a interrogá-las. Propunha-se um olhar para a memória e a procura de expressões sexuais e de género dissidentes, principalmente as afeminadas, bichas, e com especial foco nos seus prazeres e nas suas discriminações. Escrevem sobre a proposta que se trata “de seguir pegadas, exumar um passado vivo, abrir uma cicatriz.” Era, numa palavra, uma reflexão sobre afectos perdidos. Debrucei-me pela primeira vez neste exercício há meses, mas só agora consegui voltar a olhar para o projecto por motivos que se prendem com a natureza da escrita autobiográfica.
A tarefa autobiográfica é sempre uma tarefa difícil. Opera num interessante espaço textual – ou mesmo metatextual: Por um lado a autobiografia, como forma de trabalho biográfico, pode ser vista como uma extensão, uma protuberância, do que é em si mesmo o trabalho histórico. A ser esse o caso, então a biografia carregou e carrega com frequência aquilo que a história tem de pior: narrativas heróicas, hagiografias, vilificações, e sempre uma História das agências dos Grandes Homens. Há aliás margem para perguntar se foi a biografia que surgiu enquanto empreendimento histórico ou se foi a história que surgiu enquanto empreendimento biográfico.
Não é de estranhar também que ainda hoje a biografia tenha um lugar especial nas estantes populares das nossas livrarias. Deixando para trás o elogio plano, a biografia assume um papel mais activo na auto-construção do eu moderno, disciplinado e controlado: participa do eterno esforço de criação de narrativas individualizantes numa permeável tensão com a vigilância do indivíduo moderno. Esta vigilância é um processo de auto-hetero-construção do eu moderno, i.e. da constituição do eu a partir da construção de personagens conceptuais vigilantes que imagino ser os outros. Aqui a constante tensão fundamental: a idealização e inalcançabilidade do nosso eu, a camada mais visível do nosso ego, a auto-hetero-projecção da nossa imagem social que construímos ao imaginar o que os outros imaginam de nós, o interminável projecto insta-facebookeano. De há dois séculos para cá que fizemos de nós mesmas polícias aí serviço de uns outros abstractos, de um Deus social. As biografias d’aqueles-que-devem-ser-admirados produzem também figuras desta constitutiva plateia egoísta que se torna juíz e guarda daquilo que devemos ou não ser. E claro, no pólo oposto ao da hagiografia mas ainda dentro da sua matriz, a biografia vilificante: Hitler, Estaline, Hirohito, Pol Pot, Bin Laden, Saddam. Estrelas do espectáculo de monstruosidades desviantes cuja conclusão é sempre a auto-identificação da leitora com o Homem do capitalismo ocidental, e o antagonismo e rejeição categórica de qualquer projecto que lhe tenha feito frente.
Mas a autobiografia é diferente. Por um lado porque quem a escreve, escreve-a de um lugar epistemológico privilegiado: escreve-a aquela que tem um privilégio de acesso ao objecto que mais ninguém tem, precisamente por ser o próprio objecto. Tem acesso a histórias que não foram contadas, a sentimentos, a memórias… que é como quem diz, à pre-texta subjectividade do objecto. Por outro lado, assume-se à partida a existência de falhas na objectividade da escrita-sobre-si-mesma. Na verdade, este é um dos lugares-chave imaginários de facciosismo e partidiarsmo a partir dos quais se constrói a ideia de imparcialidade enquanto exterioridade, enquanto isenção, não mais ponto-de-vista mas antes espaço-visto. E nesse sentido a autobiografia oferece uma possibilidade de rompimento com a ordem epistemológica de um texto como poucas outras formas textuais o fazem. O lugar de enunciação é situado, em princípio e por princípio, e contrariamente a tudo o que se assume como factual.
É também isto que faz da tarefa autobiográfica algo tão difícil. Apresenta-se como fácil, óbvia até; mas reconhecemos bem como nessa facilidade, se escondem as premissas das formas que combatemos – se escondem a construção do indivíduo como o conhecemos hoje em dia, a constituição de histórias identitárias e do apagamento daquilo que não se lhes conforma, a reiteração formulaica dos lugares que se dão à compreensão, que nos precedem, que partilhamos, também que nos dominam.
E o incómodo que fica no ar é suficiente para que valha a pena abordar a pergunta que o provoca: temos de rejeitar a prática autobiográfica à conta destas dificuldades?, não haverá formas disruptivas da escrita-do-eu?, há vida-escrita para além d’O Autor? E rejeitar a escrita autobiográfica não é a pretensa elisão de um eu que persiste?
É este o dilema inicial que o apelo de Mariconcitos me fez confrontar: Por um lado a escrita-do-eu, por outro a vontade de a usar como instrumento desconstructivo do pensamento-de-mim; por um lado o risco de nos pensarmos origem do que somos e do que escrevemos, por outro a possibilidade de o ultrapassar pelo exercício que à partida o constitui; por um lado a verticalidade inebriante da Autoria, do outro uma visão-alucinação da escrita que a ultrapassa. No que toca especificamente à proposta: por um lado o medo de essencializar a paneleirice; de imaginar que nós, paneleiras, sempre fomos o que somos, como se não houvesse um devir-paneleiro tal como há um devir-mulher; o medo de construir uma história do miúdo maricon, de construir uma narrativa que naturalize a nossa feminilidade, as nossas disrupções sexuais e de género – mas também a compreensão da necessidade dessas narrativas, de pôr em cima da mesa essa figura sempre apagada, reprimida e castigada que é o mariconcito, o maricas, o larilas. O medo terrível de que o contar da minha história ou da minha vida seja usado para me explicar – de onde venho, o que sou, a minha natureza – mas por outro lado, a esperança de que sirva, se me faço entender, precisamente para me desexplicar. Ou seja, do outro lado está a vontade de criar um sujeito paneleiro, um sujeito que para além do mais não tem medo de instigar o conservadorismo que se faz guardião da infância (Won’t somebody please think of the children?!), e de criar algo, bem no coração dessa imaginada inocência, que não é nem homem-por-vir nem mulher-por-vir, nem mesmo gay-por-vir, que é traveca mesmo, em toda a sua potência, mas que deixa por dizer aquilo em que se vai tornar, que resiste, ora aí está, à categorização e taxonomia de um pequeno-adulto.
Se olho para a memória, o primeiro que me aparece é névoa heterossexual. E vem à língua dizer, como tantas outras que ainda não se a entregaram à névoa para ver fumaça, não, disso não tenho memória, fui gay mas nunca afeminado, nunca paneleiro, nunca maricas.
O exercício modela a memória, o exame o examinado, e por entre as gotas suspensas do esquecimento lá surgem os cotovelos de bronze esverdeado das estátuas chamadas Lembranças. Nem sempre lá estiveram, apesar de já cá estarem, e tento não cair na esparrela de achar que nasceram criadas, que não estão a ser esculpidas. São memórias não porque existissem na exterioridade – de facto foram convocadas, não descobertas – mas no significado próprio da etimologia que vai ao latim mere: atrasar, demorar, tardar, entravar. São coisas que demoraram a vir, que ficaram presas em pedaços de tempo que não viram continuidade. E ao aproximar-me dessas estátuas, abrindo a névoa, dando-lhes forma, vejo-lhes contornos que antes viviam velados. Lembro-me de ser miúdo e de me adorar mascarar, de pôr as jóias da mãe, os casacos e os sapatos. Não que fosse uma actividade em si feminina, era um carnavalizar os dias, mas era, já assim, bastante extravagante, um piscar de olho ao camp. Apercebo-me de uma criança que fez karaté durante cinco anos por não querer passar a vergonha de ser o único rapaz nas aulas de ballet. Vejo um puto que aprendeu a não se sentar de pernas cruzadas porque – sem que alguém o tivesse de ensinar – isso era de quem não tinha grandes tomates (lembro-me até de ver o primeiro ministro da altura na tv, de perna cruzada, e pensar ‘este é paneleiro!’ com um misto de orgulho macho e empatia embaraçada). Lembro o puto que, com treze ou catorze anos, no início da descoberta da masturbação, se deixou levar pelo desejo de ver umas fotografias de porno gay. O puto que se veio mais do que nunca e concluiu categoricamente pronto, pedro, és gay. Tudo bem. Agora só tens de esconder isso para o resto da tua vida. Vejo o puto que se apaixonou por um gajo bem mais velho, deputado, que por sua vez usou da fragilidade paneleira do primeiro para abusar dele emocional e psicologicamente. O puto que saiu do armário temendo nada e cheio da alegria ingénua do amor, só para encontrar um pai que ficou meses em silêncio e uma mãe que passou a noite em branco e que, de olhos vermelhos, lhe perguntou pela manhã mas o que é que eu fiz de mal na tua educação? Sair de casa, ir para a escola, impingir-me desafectação.
Mas acima de tudo vejo uma criança que se sentia, e de facto era, profundamente inadequada e que vivia apavorada com a possibilidade de lhe descobrirem a sua natureza alienígena. Era uma criança cheia de vergonha, violentamente só, que não tinha a quem socorrer, que se via ao abandono.
Há duas estátuas-memórias em particular de que me lembro quando penso nestes afectos. A primeira é a de, com oito ou nove anos, ter experiências sexuais com um amigo próximo. Na verdade, mais do que sexuais, eram pornográficas. Íamos para casa dele, entrávamos em sites porno, e imitávamos um no outro aquilo que víamos na net. Os gestos, as posições, a expressão do prazer. Era um espaço tão excitante quanto arriscado; mas tratava-se da reprodução de imagens, não do que elas pretendiam significar. Aquilo que melhor ilustra a experiência é talvez a lembrança carnal de pôr uma pila murcha de criança na boca, com a devida cerimónia para que os lábios não a tocassem, e não houvesse realmente contacto. Mas mais do que isso fica a memória-mágoa de quando, ao comentar num outro momento a minha vontade de continuar a expressar aquele desejo, o rapaz-criança se fez desentendido, por certo por ter noção do errado da situação. Essa história acaba aí e é a primeira memória que tenho de um profundo abandono, de não ter ninguém a quem socorrer, de uma profunda solidão.
A outra estátua-memória, desta vez ainda mais ligada à vulnerabilidade do que à delinquência sexual, foi construída a posteriori. É a de um bebé, nu, recém-operado, à mercê do mundo; sem capacidade imunológica, sem possibilidade de se proteger. É uma estátua-memória construída a partir de uma fotografia. Eu, deitado numa maca; atrás, tubos que me alimentam por um cateter intravenoso espetado num fino braço imobilizado por ligaduras; tenho um penso sobre uma cicatriz operatória que me ocupa metade do ventre; agarro a Margarida, a minha sapa de peluche cujo laçarote vermelho tinha arrancado à dentada. É impressionante como me lembro de tão poucas coisas na minha infância, mas como me toca tão visceralmente esta memória fabricada do período pós-operatório – de novo coisas atrasadas no tempo, retardadas.
Durante muito tempo tive dificuldade em olhar para esta foto. Ela mostra-me no meu estado mais vulnerável. É um tremor visceral de me enfrentar criança, com três anos, depois de uma peritonite que me deixou às portas da morte. Não que o medo fosse de morrer, eu-criança não sabia da morte para lhe ter medo. O medo era desse estado desprotegido, e do que essa vulnerabilidade significava para aquelas que mais me amavam: a proximidade da minha morte magoava-as, a minha fragilidade feria-as. No final o que ficava, mais que tudo isso, era um sentimento de nojo. Nojo dessa criança, nojo dessa impotência, nojo de ser esse bebé. A fraqueza: que asco.
Sei que por vezes amigas têm dificuldade, ainda hoje, em conceber-me como alguém que carrega em si, ao mesmo tempo, por um lado uma vulnerabilidade profunda, um sentimento constante de fragilidade, uma violenta volatilidade emocional; e por outro não só o desejo mas efectivamente a exigência de confronto, de espetar a minha anormalidade nos olhos que reprovam, de vestir uma saia, pôr brincos compridos e pintar os olhos – não só apesar dos dias em que estou mal, mas também por causa destes. Uma amiga muito próxima escreveu-me há pouco tempo: Ela usa saias. Ela usa brincos e colares todos os dias. É alta, magra e move-se com uma delicadeza ingénua e algo atabalhoada. Ela é dona do mundo, centro de todas as atenções em qualquer lugar onde está. (…) Chamam-lhe paneleiro, maricas, palhaço. Acusam-na de ser um snob auto-centrado, com sede de protagonismo, um prepotente académico que não conhece o mundo. Um individualista, dominador de flirts, que dorme com toda a gente. Eles não sabem nada dela. Não sabem do esforço permanente de resistência dela.
Pois bem, vem daqui. É daqui que me lembro o primeiro contacto com o pequeno monstro dentro de mim, o monstro do mostrar medo do estar desprotegido, do ser vulnerável e impotente, da possibilidade do ser abandonado e deixado só, no meio da rua, para morrer. Cá está o monstro que deixei num armário, trancado a sete chaves, para que ninguém veja quem sou, com medo de ficar só. E todas sabemos, embora por vezes seja difícil admiti-lo, que um monstro é só uma criança que cresceu presa.
A Eve Kosofsky Sedgwick escreve que “ao interromper a identificação, também a vergonha produz identidade. De facto, vergonha e identidade mantêm-se numa relação mútua bastante dinâmica, ao mesmo tempo desconstituinte e fundacional, porque a vergonha é em simultâneo peculiarmente contagiosa e peculiarmente individualizadora.” Essa vergonha, como esse medo e essa vulnerabilidade, são o substrato de algumas das ferramentas emancipatórias que tenho hoje em dia; mas durante vinte anos foram-me um cerne desconhecido – ora paralelipípedo kubrickeano a la 2001, ora material esponjoso sem forma clara, ora vazio incoordenável. Um cerne escondido e protegido por uma carapaça de voz altiva e atitude arrogante que me fez quem sou. Ao princípio, encontrar este cerne monstruoso foi um enfrentamento mais que outra coisa. Aquela criança trancada tinha virado um Adamastor, um monstro que não se reconhece criança. E os adamastores são os monstros mais difíceis de lidar. Mas fui percebendo que, como com qualquer criança má, não se tratava de discipliná-la, mas de lhe respeitar a violência.
Venho agora há anos a tentar reconciliar-me com o meu monstro mariquinhas, com o meu monstrosito maricon. Não tem sido fácil. Afinal de contas, crescemos separadas, mas foi também dessa separação que nascemos: o encarceramento do meu monstro fez de mim quem sou, estabeleceu as possibilidades de me relacionar, desenhou a economia do meu desejo. Contra todos os instintos, e desafiando o próprio conforto, fui-lhe entreabrindo o armário e tenho tentado, o quanto possível, andar de mão dada com ele. Reconheci as partes que me amedrontavam, mas também a sua potência: É o monstro que se revolta, que me permite ter a força para me maquilhar, para ser bicha, para usar saias, foi o monstro que, nos meus sonhos, veio em meu socorro e mandou ao caralho aqueles que me gozavam por andar de mãos dadas com um gajo. Ele dá-me a raiva e a fúria que eu tranquei de lado, ele quer pancada quando eu quero fugir, ele grita sou paneleiro sim, seu procriador de merda quando eu só me quero esconder.
Este conto, sei-o, está longe de acabar. Os monstros só existem em tensão, só existem em marginalidade. Desapareceram das margens dos mapas quando se navegou redondo o mundo. Ressurgiram, nascentes, nos seios das vilas europeias como presságios da fúria divina e nas marchantes bordas do Novo Mundo como símbolos de negritude e bestialidade. Foram domesticados em frascos de laboratório e ainda assim não deixaram de surgir, incólumes e mais feios do que nunca, na mesa de laboratório de Frankenstein, no ventre de Mary Shelley, no parlamento de monstros de Wordsworth. Tentou-se criá-los, a época da ode à teratogenia elogiada por Darwin, mas ainda assim não nos espremeram do desconforto. Ressurgiram fantásticos, aliens, mitopoéticos, ciborgues, animados, conhecidos pelas ciências sociais e psicológicas mas sempre como desvios, aberrações, nojentas, de-generadas.
Este conto está longe de acabar. Na minha estória, como na história do Homem que as monstras sempre vêm pôr em causa. Também elas espreitam dos frisos das igrejas e das margens dos textos proibindo que me cale a mim própria contando uma estória final; as estórias são sempre provisórias, são sempre só um entendimento, são sempre precárias, e só sedimentam quando, por medo, tentam matar monstros. Se há alguém a quem se possa confiar a produção autobiográfica é aos monstros: é difícil a universalidade quando se trata de uma escrita conduzida pela monstruosidade, de uma teratografia. A minha mariquice, ser maricas, medroso, veio o orgulho raptá-la à vergonha. O monstro cá continua, por vezes aterrador, amedrontando. Mas transformou-se também numa potência de vida que a cada dia me desafia a experimentar o desconfortável, a devir mais paneleira, mais incómoda, menos domesticável. O mesmo monstro maricas que me amedrontava transformou-se numa enorme criatura insurreccional.

Obs.Foto do Editor

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