Na ditadura, gays eram rejeitados pela direita e pela esquerda, afirma escritor e ativista gay


Roldão Arruda

João Silvério Trevisan decidiu deixar o Brasil em 1973, após a censura proibir a exibição do filme Orgia ou o Homem que Deu Cria, que ele havia escrito e dirigido. Ao voltar, três anos depois e ainda em plena ditadura, ajudou a criar o movimento gay no Brasil, esteve entre os fundadores e principais redatores do histórico jornal Lampião da Esquina e escreveu Devassos no Paraíso, um amplo painel sobre a questão da homossexualidade no País.
Na entrevista abaixo, Trevisan fala das perseguições sofridas pelos gays durante a ditadura e dos embates com os movimentos de esquerda. Segundo sua avaliação, o movimento gay era rejeitado pela esquerda, que não aceitava sua independência. “Eles eram autoritários e travados”, afirma.
Além de cineasta, Trevisan, hoje com 69 anos, é romancista, contista,  ensaísta e tradutor. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Você decidiu sair do Brasil no início da década de 1970, no meio de um dos piores períodos da ditadura, na vigência do AI-5. Foi uma decisão  relacionada à perseguição aos homossexuais?
Foi, indiretamente. Teve a ver com a proibição de meu filme, Orgia ou o Homem que Deu Cria, que envolvia a homossexualidade – não como questão de direitos, mas como vivência. Apresentei uma travesti, cenas sadomasoquistas, homens pelados, dentro de um esquema de provocação, que a ditadura entendeu. A censura proibiu o filme em sua quase totalidade, por considerá-lo obsceno. Diante disso, resolvi deixar o País, o que acabou tendo muitos efeitos colaterais positivos para mim.

Que efeitos?
Eu saí para o mundo. Eu e várias outras pessoas. Foi uma geração inteira que teve possibilidades de fazer trocas importantes lá fora e voltar para o Brasil em condições de discutir a nossa realidade sob uma ótica menos fechada do que a existente aqui. No meu caso foram importantes os contatos com os movimentos feminista, homossexual e contra o racismo, além da questão ambiental, que já estava em voga em Berkeley, na Califórnia, para onde eu fui em 1973.
Berkeley foi um dos principais centros de contestação política dos Estados Unidos.
Fui para lá de propósito. Eu queria assistir à queda do império americano. Havia acabado de descobrir coisas importantes na minha vida, entre elas, Rimbaud. Assim como ele tinha viajado para ver a queda de Paris, sob a Comuna (1871), fui para ver a queda do império americano. Não vi, mas conheci um outro lado do império, fascinante e fundamental. Tive contatos literários importantes e conheci a esquerda americana, a diversidade da New Left, que está na base da contracultura. Foi uma vivência extraordinária, que durou três anos.
E como foi a volta, com essa nova bagagem?
Isso me ajudou na fundação do movimento homossexual no Brasil. Começamos com o Grupo Somos, em São Paulo, e o jornal Lampião (circulou entre 1978 e 1981), no Rio. Logo no início o jornal teve problema com a ditadura. Fomos indiciados num inquérito, sob a acusação de ofensa à moral e aos bons costumes, por conta de uma matéria minha defendendo o jornalista Celso Kury, que já enfrentava processo, sob a mesma acusação. Fui fotografado na Polícia Federal com uma plaqueta no pescoço na qual estava gravado o número 024-0. A escolha do número não era por acaso.
Estava claro para você que era uma ação contra a homossexualidade?
Eles não sabiam muito bem o que era homossexualidade. Sabiam que era uma coisa ruim, mas não definiam bem. Quando chegamos lá na polícia, engravatados e acompanhados pelo advogado do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, o cara perguntou: ‘Como devo chamar o senhor?’ Eu respondi: ‘Pode chamar de veado mesmo’. Acho que ele estava esperando uma travesti ou alguma outra coisa próxima do conceito dele do que seria homossexualidade. Num dos interrogatórios, começou a fazer perguntas como se eu fosse um guerrilheiro que tivesse ido para Cuba. Até o que o escrivão parou, os dois cochicharam e resolveram cancelar aquele interrogatório e marcar outro.
Pode falar do cenário que encontrou na sua volta?
Quando cheguei, estavam em plena florescência no País o Ney Matogrosso e os Secos & Molhados e os Dzi Croquettes – uma corruptela de The Cockettes, que existia em São Francisco. Era a esculhambação da esculhambação. Também encontrei uma quantidade espantosa de travestis nas ruas. Em três anos de ditadura, portanto, aconteceu uma coisa que nunca consegui entender. Como é que eclodiu esse fenômeno?
Que palpite você arriscaria?
Provavelmente essas reações radicais eram uma resposta à repressão. Ou seja: estávamos reagindo à repressão política de uma maneira política, mas que eles não entendiam bem.
Como acabou o inquérito sobre a matéria no Lampião?
Não levou a nada. O juiz disse que não havia provas contundentes de que havíamos atentado contra a moral e os bons costumes.
Que outro tipo de ação repressiva o jornal enfrentou?
A coisa mais próxima disso foram os folhetos espalhados pela cidade, quando começaram os atentados a bomba contra bancas que vendiam jornais alternativos, como PasquimMovimentoOpinião. O Lampiãofoi colocado no meio, apesar de viver escondido nas bancas. Os donos das bancas não expunham o jornal, porque era considerado uma coisa pornográfica.
Como foi a relação do movimento com a esquerda?
Por incrível que pareça, também tivemos embates com a esquerda. Se você considerar que a esquerda era a margem do que estava acontecendo, nós ficávamos à margem da margem. Éramos indesejados pela direita e pela esquerda. É interessante notar que toda a nossa postura, enquanto movimento social que reivindicava direitos, era de esquerda.
A ditadura não era o inimigo comum a todos? 
Na visão da esquerda tradicional, os movimentos sociais novos eram diversionistas, dividiam o movimento operário. Por essa visão, éramos minorias e deveríamos nos submeter à prioridade política, que era o movimento proletário. A realidade é que eles mal nos suportavam. Isso chegou às vias de fato durante um congresso do MR-8, quando algumas feministas apanharam. A nossa grande experiência da ditadura pode ser resumida assim: os generais eram horríveis e a esquerda, autofágica. Isso, infelizmente, está sendo pouco analisado. Ninguém está botando o dedo na ferida, para ver como era realmente a esquerda no período. É muito importante rever toda essa questão das prisões ilegais e injustas, das torturas, mortes, mas isso não é motivo para esquecer o que foi a esquerda.
Por que? Isso ajudaria a entender a esquerda hoje?
Sim. Os cacoetes das esquerdas do período formaram as esquerdas que vieram a tomar a poder, os governos de centro e de esquerda que se sucederam após a redemocratização. Isso teve um efeito muito danoso, porque não soubemos, na redemocratização, sequer reformar nosso Exército e a Polícia Militar. É um escândalo ver que, depois de 50 anos, do golpe militar, ainda existam pessoas dispostas a ir para a ruas manifestar apoio ao Exército que deu o golpe.
Como você vê a Lei da Anistia, de 1979?
Foi uma tentativa de se colocar uma pedra em cima de tudo o que ocorreu e deixar intocadas as velhas ideias. Aconteceu que essa pedra criou vermes, que começaram a se multiplicar. É a questão da sombra junguiana. O Jung diz que a sombra no interior da psique é perigosíssima, porque se desdobra, enquanto não chega à luz do consciente.
O que lembra das denúncias de perseguições promovidas pelo delegado Wilson Richetti, na década de 1970?
De fato, ele promovia perseguições. Ia ao gueto, às bocas, abria os camburões e mandava os veados entrarem. ‘Quem for veado vai entrando’, gritava. Era na porrada. Quem sofria mais eram as travestis. Em 1982, quando fizemos uma manifestação contra as ações policiais fomos reprimidos. Aquilo era consequência de uma coisa fascista e reacionária que vivíamos no País.
Os partidos políticos, as organizações de esquerda apoiaram essa manifestação?
Não. Veja você: na época das grandes manifestações operárias no ABC, os homossexuais foram ao Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo, desfilar na comemoração do 1.º de Maio. Foi o momento do racha do Grupo Somos, porque uma parte dele, da qual eu fazia parte, se recusou a desfilar sob a bandeira da Convergência Socialista. Não queríamos ser confundidos com nenhum partido. Defendíamos a existência de um movimento autônomo. Mas, como eu dizia, uma parte foi ao encontro da classe operária, que estaria abrindo o caminho para o socialismo, nos abençoando para um novo mundo, etcétera e etcétera. Quando fizemos a nossa passeata, no entanto, para protestar contra o Richetti, não apareceu um único membro de sindicato, de partido político.
Nenhum?
Na verdade, o Suplicy (Eduardo Suplicy, na época deputado estadual, hoje senador pelo PT) apareceu. Ele acompanhou de perto a questão das travestis. Foi muito solidário. Mas era a exceção. Nossos aliados estavam ao nosso lado enquanto interessava a eles, não quando interessava a nós. Foi um aprendizado muito doloroso. Quero deixar claro que não estou desculpando a ditadura. Saí do País porque o clima era insuportável, porque nossos amigos estavam sendo mortos. Mas isso não me impede de analisar a esquerda.
Você sofreu alguma censura da esquerda?
Uma vez mandei para o jornal Movimento um artigo que era uma espécie de introdução à questão dos direitos dos homossexuais. O texto foi submetido aos censores da Polícia Federal, em Brasília, e vetado. O pessoal responsável pela edição do jornal me devolveu o artigo datilografado, explicando que tinha sido censurado. Ao verificar o original, porém, constatei que, antes de ir a Brasília, havia sido inteirinho riscado pelo editor do Movimento. Ele deixou só o que lhe convinha. Sobrou pouca coisa para o censor, que, mesmo assim, vetou. Posso dizer que fui submetido a uma dupla censura. As esquerdas eram autoritárias e travadas.

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