O chefe do Ministério Público de São Paulo, Mario Sarrubbo, decidiu desconsiderar a Constituição em nome do corporativismo.
O procurador-geral de Justiça
Mario Luiz Sarrubbo, chefe do Ministério Público do Estado de São
Paulo, o MPSP, autorizou licenças pagas para que dois promotores
disputem as eleições de outubro próximo. Algo que a Constituição diz
claramente que é proibido.
Tratam-se da midiática promotora Gabriela Manssur, que ingressou na
carreira em 29 de agosto de 2003, e de seu colega Antonio Domingues
Farto Neto, que está no Ministério Público desde 23 de outubro de 1990.
As datas, disponíveis no Portal da Transparência do MPSP, são fundamentais nesse caso.
A carreira dos promotores e procuradores, também chamados de membros
dos ministérios públicos, é regida pelo artigo 128 da Constituição. Ele
foi alterado pela emenda constitucional 45, de 2004, que retirou as
exceções até então previstas e passou a proibir sumariamente qualquer
atividade político-partidária dos promotores e procuradores. Apesar
disso, o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, validou dois anos depois as aventuras político-eleitorais de membros do Ministério Público que tenham entrado na carreira antes da Constituição ser promulgada, em 5 de outubro de 1988.
Quem chegou ao MP antes disso, portanto, vive num mundo de sonho.
Pode disputar eleições fazendo campanha sem perder um centavo do gordo
salário pago a promotores e procuradores, entre os mais altos do serviço público
do Brasil. Se não forem eleitos, voltam à ativa no MP (apesar dos
compromissos políticos assumidos durante as campanhas) e vida que segue.
Mas o doutor Sarrubbo decerto achou que ainda era pouco e permitiu a
Manssur e Farto Neto, que só chegaram ao MP após 1988, gozarem do mesmo
privilégio.
As autorizações de afastamento de Manssur e Farto Neto, respectivamente.
“O
MPSP informa que a questão da participação de membros que ingressaram
na instituição entre 1988 e 2004 no processo eleitoral não está
pacificada pela Justiça Eleitoral e pelos tribunais superiores”,
justificou-se o MPSP quando o questionamos. “Há precedentes em outras
unidades do Ministério Público dos Estados e também no MPF”. Os
precedentes mencionados são tentativas de chapelar a Constituição iguais
às de Manssur e Farto Neto.
A nota prossegue: “As candidaturas, evidentemente, serão validadas ou
não pela Justiça Eleitoral. Recusar de pronto as demandas apresentadas à
instituição pelos promotores Gabriela Manssur e Antonio Farto, que
tomaram posse neste intervalo, representaria interditar seus direitos
políticos sem que tal situação pudesse ser corrigida no futuro”,
argumentou o MPSP.
Ou seja: para se justificar, o MPSP tenta criar confusão onde não
existe. Não há óbice algum à participação de promotores e procuradores
em eleições – desde que, para isso, deixem a carreira no Ministério
Público, como ordena a Constituição. A carta magna não “interdita
direitos políticos” de promotores, mas sim veta a regalia de acumular a
candidatura eleitoral a um vencimento privilegiado e uma posição que
permite interferir no jogo político em benefício próprio – que o diga a
Lava Jato.
“É uma não-resposta com base numa desfaçatez jurídica”, avaliou o
jurista Conrado Hübner Mendes, doutor em direito e ciência política e
professor de direito constitucional na Universidade de São Paulo, a USP.
Mendes é um contumaz denunciante dos privilégios e abusos de membros
dos ministérios públicos e do Poder Judiciário, a quem define como a
“magistocracia”. Por isso, é perseguido em processos movidos por figuras
como o procurador-geral da República Augusto Aras e o ministro Kassio
Nunes Marques, o 01 de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal.
“Ninguém tem direitos políticos interditados. Deltan Dallagnol,
Sergio Moro e Wilson Witzel se exoneraram [para fazerem política e
disputarem eleições]”, ele lembrou. Ou seja, bastaria a Manssur e Farto
Neto pedirem para sair do MPSP, como determina a Constituição.
Do almoço com Bolsonaro à censura a jornal
Dona de um discurso que se pendura num lugar entre o feminismo e o
reacionarismo bolsonarista, Gabriela Manssur é filiada ao MDB e
pré-candidata a deputada federal. Já há algum tempo ela divide seu tempo
entre as atribuições no MP e o Instituto Justiça de Saia, que se propõe
a empoderar as mulheres a fazerem o que desejarem, mas cujos site e página no LinkedIn contêm pouco mais que propaganda da promotora.
Apesar do que determina a Constituição, mesmo antes de se licenciar
Manssur já se sentia à vontade para comparecer a eventos
obviamente eleitoreiros, como um badalado almoço da fina flor da grã finagem paulistana com o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, em abril de 2021, mês em que quase 90 mil brasileiros morreram de covid-19.
Em dezembro de 2021, último mês sobre o qual há dados disponíveis no Portal da Transparência do MPSP – considerado ruim
pela Transparência Brasil –, Manssur acumulou R$ 24.430,06 em verbas
indenizatórias e R$ 16.844,55 de gratificação natalina ao salário base
de R$ 33.689,10. Assim, levou para casa, limpos, R$ 53.352,55.
Já Antonio Farto Neto é promotor em Sorocaba, cidade de 695 mil
habitantes a 87km de São Paulo. Ali, foi promotor da Infância e da
Juventude antes de passar a comandar a Promotoria do Meio Ambiente. Em
seguida, “foi convidado a filiar-se ao PSC dentro da política da
agremiação de incentivar candidaturas novas que apresentem um currículo
de comprometimento com o conservadorismo e com a democracia”, informa o tradicional jornal local Cruzeiro do Sul. Quer ser candidato a deputado estadual.
Foi na redação do Cruzeiro do Sul, aliás, que Farto Neto protagonizou
um episódio que nada fica à dever à censura da ditadura militar.
Incomodado com uma greve geral convocada para se contrapor à reforma
trabalhista de Michel Temer, em 2017, ele resolveu ir à redação e determinar como o jornal deveria cobrir a manifestação,
ordenando entrevistas com o comando da PM e da guarda municipal.
Segundo quem testemunhou a demonstração explícita de truculência, Farto
Neto – que é conselheiro da entidade que publica o Cruzeiro do Sul –
escreveu ele mesmo a manchete daquela edição.
Em dezembro de 2021, Farto Neto engordou o salário base de R$
33.689,10 com R$ 24.430,06 de verbas indenizatórias, R$ 8.193,13 de
gratificação de permanência, R$ 1.085,54 em remunerações temporárias e
R$ 16.844,55 da gratificação natalina. Limpos, embolsou R$ 63.619,39.
Eu fiz contato com Manssur via Instagram, WhatsApp e pelo site do
Justiça de Saias para perguntar se a promotora desconhece o artigo 128
da Constituição e a emenda constitucional 45/2004, ou, do contrário, por
que os ignorou. Também liguei para seu telefone celular e deixei recado
na caixa postal. Não houve resposta.
Busquei por Farto Neto na Fundação Ubaldino do Amaral, publicadora do
Cruzeiro do Sul, e na sede do MPSP em Sorocaba. Pedi à secretaria do
órgão para que transmitisse a ele meu pedido de entrevista. Também
enviei perguntas a um e-mail pessoal dele fornecido pela Ubaldino do
Amaral. Farto Neto não me respondeu.
Licença aos pré-1988 também é questionável
O procurador-geral Sarrubbo também concedeu licenças com vencimentos
para outros dois promotores do MPSP que são membros da categoria desde
antes de 1988 e, por isso, estão protegidos pelo que decidiu o TSE:
Marcos Antonio Lelis Moreira, de São José do Rio Preto, e Fernando
Capez, já licenciado para ser chefe da Fundação Procon no governo João
Doria, do PSDB.
As autorizações de licença de Lelis Moreira e Fernando Capez, respectivamente.
“Ingressei
no MP em 23 de dezembro de 1986. A lei orgânica me dá o direito de
estar descompatibilizado e receber vencimentos”, me disse Lelis. “É uma
questão legal. Se a lei me permite isso, não vejo nenhum incômodo. E, se
houver algum incômodo, me aposento a qualquer hora. Tenho 45 anos de
serviço público”. Lelis, filiado ao bolsonarista Avante “faz um ano,
já”, quer ser deputado estadual.
Para dedicar o tempo a movimentar a própria campanha com posts em
homenagem a qualquer data que apareça no Instagram, Lelis irá seguir
recebendo os R$ 33.689,10 do salário base de promotor. Que, em dezembro
de 2021, ele engordou o contracheque com R$ 1.470,73 de verbas
indenizatórias, R$ 18.281,77 de gratificação natalina, R$ 8.347 de abono
de permanência e mais R$ 561,48 a título de remunerações temporárias.
Limpos, foram R$ 64.688,93.
No Instagram, Marcos Antonio Lelis Moreira usa o cargo de promotor para fazer pré-campanha a deputado federal.
Fernando Capez já faz algum tempo que se dedica à política. Foi eleito deputado estadual pela primeira vez em 2006 (sua eleição,
justamente, foi o que levou o TSE a julgar as candidaturas de membros
do MP), mas já estava filiado ao PSDB desde 2002. Após três mandatos
consecutivos na Assembleia de São Paulo, Capez perdeu em 2018. Mas não
ficou a pé: foi escolhido pelo tucano João Doria para presidir a
Fundação Procon e, depois, para comandar a Secretaria Especial de Defesa
do Consumidor, criada em 2020.
Atualmente filiado ao União Brasil, Capez quer voltar a ser deputado
estadual. “Essa é uma pergunta que não tem nem cabimento, quando a
Constituição e a legislação admitem isso”, irritou-se, quando questionei
se considerava ético receber salários do MPSP para ser candidato.
Capez tem o privilégio – garantido por lei
a todos membros do MPSP – de escolher entre os vencimentos de promotor
ou do cargo político que ocupem. Na prática, é o direito de escolher o
maior salário. Capez optou por seguir recebendo do MPSP, que paga a seus
promotores quase o dobro do que recebe o governador do estado. Assim,
em dezembro passado, recebeu R$ 35.462,22 de salário base, acrescidos de
R$ 17.731,11 a título de gratificação natalina. Após os descontos,
levou R$ 30.128,88 líquidos.
‘Se a lei me permite isso, não vejo nenhum incômodo’.
Mesmo
em casos como os de Fernando Capez e Marcos Lelis, é questionável o
privilégio de poder se candidatar sem deixar o cargo, contrariando o que
determina a Constituição, me disse Conrado Hübner Mendes.
“Uma coisa é dizer que você tem direito adquirido a um regime
original de aposentadoria. Outra coisa é você dizer que tem direito
adquirido a uma regra anti-republicana que prejudica a instituição”, ele
argumentou, comentando a decisão do TSE de permitir candidaturas de
membros do MP que ingressaram na carreira antes da Constituição de 1988.
“Uma instituição de estado não pode ser impedida de ser mais
republicana porque um membro individual diz que tem direito adquirido ao
regime anterior. Não só de remuneração, mas de configuração da função”.
Mendes prosseguiu: “Em 1988 foi assim, muitas regras
anti-republicanas anteriores foram vistas como ‘direito adquirido’ [após
a promulgação da Constituição]. E quem disse isso foram os próprios
atores que se beneficiam com isso, em prejuízo das instituições e em
nome de direitos individuais. Historicamente, nas transições jurídicas, a
magistocracia nunca perde. Sempre arranja um modo de acomodar os
interesses individuais dos membros que gozam de privilégios. Em prejuízo
das instituições. E chamam isso de direito adquirido ou de
‘interpretação técnica do direito’. Mas é outra coisa”.