ESTAS MÃES QUE PERDERAM A GUARDA DOS FILHOS TÊM ALGO EM COMUM: RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS Mulheres são denunciadas por familiares e ex-companheiros e têm filhos afastados em processos que demonizam ritos religiosos
ESTAS MÃES QUE PERDERAM A GUARDA DOS FILHOS TÊM
ALGO EM COMUM: RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
Mulheres são
denunciadas por familiares e ex-companheiros e têm filhos afastados em
processos que demonizam ritos religiosos.
2 de Maio de 2022,
11h36
Ilustração: João Brizzi para o Intercept Brasil
EM DEZEMBRO DE 2019, a dona de casa Josileide
da Gama foi forçada a entregar os dois filhos a uma irmã. A justiça não permite
que a mãe fale com as crianças por telefone, e Gama não deve chegar a menos de
300 metros dos meninos. Isso porque o Judiciário a considera suspeita de
negligência e de expor os filhos a um “ambiente inadequado” – segundo ela, o
terreiro de Jurema que funciona em sua casa. Pela forma que a religião
afro-ameríndia é descrita no processo, a defesa acredita que a razão da
suspensão da guarda seja apenas fruto de intolerância religiosa.
Juremeira há oito anos, Gama é
mãe de santo, vive com uma deficiência física e morava com os filhos e o pai de
santo Joalisson Gomes da Silva, seu cuidador, até a 1ª Vara da Infância e
Juventude de João Pessoa decidir puni-la por “não promover os cuidados
essenciais com alimentação, educação, higiene, bem como expor os filhos em um
ambiente inadequado”. Apesar de esse tipo de caso ter o prazo de 120 dias para ser decidido, ainda não houve
veredito. Desde a suspensão, Gama só viu os filhos – hoje com 11 e 15 anos –
quatro vezes, em março do ano passado.
O caso chamou a atenção do
então presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB na Paraíba,
Franklin Soares, que assumiu a defesa depois da suspensão da guarda. “A
denúncia do Ministério Público é recheada de termos que considero
preconceituosos. Por exemplo, quando se fala que o culto da Jurema é uma
algazarra, regada a bebida, fumo e com presença de pessoas de índole duvidosa”,
me disse o advogado.
De acordo com Gama, o terreiro
fica no último cômodo da casa, enquanto o quarto das crianças fica no primeiro,
o que não as colocaria em contato com as atividades religiosas. “Eu amo a minha
religião e amo os meus filhos. Eu não abro as portas da minha casa para o mal,
mas, sim, para ajudar as pessoas”, explicou.
Encontrei disputas judiciais
semelhantes em Pernambuco, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. Em
todas elas, a inserção de crianças e adolescentes em cultos religiosos de
matriz afro-ameríndia ou o contato com a religião se transformaram em argumento
para pedidos de suspensão ou de perda do poder familiar – o termo jurídico para
a supressão do direito de guarda pelos pais ou responsáveis legais. Segundo
dois juristas e uma pesquisadora da Universidade do Estado de São Paulo, a
Unifesp, essa situação tem sido cada vez mais frequente.
Ex-presidente da Comissão de
Liberdade Religiosa da OAB do Distrito Federal, a advogada Patricia Zapponi
afirmou que, nos últimos quatro anos, viu um aumento desse tipo de caso.
“Dentro do direito de família, não se tinha tanta ocorrência com relação à
religião. Hoje, você já vê contendas gigantes postuladas em cima disso”, me
contou. No escritório dela, independente da Comissão da OAB, chegaram 18 casos
nos últimos três anos, 15 deles envolvendo religiões de matriz africana.
O advogado Hédio Silva Junior,
ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo e atual coordenador executivo
do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras,
contabilizou três casos em que atuou diretamente, desde 2019, além de outros
três de que tomou conhecimento por parte de colegas – todos relacionados ao
contato de crianças e adolescentes com rituais de religiões afro. Até então,
Junior só havia atuado em uma situação do tipo, em 2007.
“Esses casos que têm chegado
até nós são a ponta de um iceberg imenso. Certamente há milhares espalhados
pelo país”, acredita. Em 18 de abril, o Uol revelou que as denúncias de intolerância
religiosa triplicaram no estado de São Paulo entre 2016 e
2021. Há cinco anos, as delegacias paulistas registraram 5.124 ocorrências do
crime. Já no ano passado, o número subiu para alarmantes 15.296 registros.
A questão preocupa os
advogados, porque acontece no mesmo momento em que o Brasil como um todo
registra um aumento das denúncias de violações de direito à liberdade de
religião e crença. Em 2019, segundo dados obtidos por nós, por meio da Lei de
Acesso à Informação, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
registrou 714 denúncias de intolerância religiosa pelo Disque 100. Em 2020,
foram 1.388, ou seja, 94% a mais que no ano anterior. Até então, na última
década, o ano com mais denúncias era 2016, com 759 registros, de acordo com uma
base de dados disponível no site do Ministério. O dado, porém, diverge do
obtido por nós via LAI, em que constam 758. Em 2021, os dados mostram 1.021
denúncias.
O Painel de Dados da Ouvidoria
do Ministério mostra que, entre 2021 e 2020, foram registradas 83 violações de
direito à liberdade de religião e crença cujas vítimas eram crianças ou
adolescentes. Os números, porém, podem ser ainda maiores. Os dados obtidos por
nós via LAI mostram que o Ministério registrou 124 violações por intolerância
religiosa com vítimas de 17 anos ou menos em 2021 e 2020. Dessas, 102 ocorreram
apenas em 2021. Em 15 casos, a religião da vítima era o candomblé, em outros
10, a umbanda.
Como as disputas por guarda são
analisadas em segredo de justiça, não há como saber em quantos pedidos de
destituição a religião foi a causa ou pelo menos um argumento. Segundo o
Conselho Nacional de Justiça, 3,8 mil destituições do poder familiar foram
julgadas procedentes até outubro do ano passado. Em 2020, considerando o ano
todo, foram 4,9 mil, quase 240% a mais do que em 2019.
‘Estou esquecendo o cheiro deles’
Em setembro de 2019, depois de
receber uma denúncia que a defesa suspeita ter vindo da irmã de Gama, o
Conselho Tutelar da Região Norte de João Pessoa emitiu um relatório em que
afirmava que Josileide Gama era negligente com os filhos e praticava violência
psicológica contra eles. Segundo o documento, as crianças não tinham hora para
comer e dormir, e faltavam cuidados com higiene e educação. Além disso, há uma
afirmação na denúncia que leva a mãe e seu advogado a acreditarem que ela está
sofrendo intolerância: a de que as crianças viviam em um ambiente atribulado,
onde eram realizadas atividades religiosas “regadas a música alta e confusões
até a madrugada”.
O relatório foi apresentado ao
Ministério Público, que denunciou a situação em novembro do mesmo ano ao Judiciário
da Paraíba. Segundo o MP, o Conselho Tutelar estava acompanhando as crianças
desde 2018, devido às acusações de que elas viviam em um ambiente de farra,
bebidas e cigarros. No relatório, o conselho traz uma “denúncia expressa de que
a genitora costumava colocar pessoas dentro de casa para os rituais religiosos,
que envolviam álcool e outras drogas e poluição sonora, que aconteciam no
período noturno”.
Em 8 de novembro de 2019,
quatro dias depois da denúncia, o juiz Adhailton Porto decretou a suspensão do
poder familiar de Gama, seu afastamento dos filhos e a guarda provisória das
crianças à sua irmã por até 90 dias. A decisão judicial não fala expressamente,
em nenhum momento, de religião, mas alega que há indícios veementes de que os
irmãos “estão expostos à situação de risco sob a guarda da genitora”.
Entre outros sinais de
intolerância, o advogado de defesa aponta que as denúncias fazem referências ao
título de pai de santo sempre entre aspas. “A denúncia é carregada com
intolerância religiosa, posto que eu nunca vi o termo pastor ou o termo padre
ser apresentado em documento oficial algum entre aspas”, avaliou Franklin
Soares.
Outra alegação do Ministério
Público é a de que o pai de santo teria agredido uma das crianças e que seria
má influência para elas. A presença do homem seria desconfortável e causaria
medo. A defesa diz que as crianças mudaram a percepção e depoimento sobre o
homem depois que saíram da casa da mãe. “Eu acho um descaso grande. Uma coisa
que eu não fui ouvido, não fui chamado. Estou levando uma culpa sem merecer”,
diz Joalisson. Gama as desmentiu: “ele é uma pessoa maravilhosa, cuida de mim,
dos meus filhos, me ajuda financeiramente”. O advogado também reforçou que a
alegação não procede. “O Ministério Público e o Juízo da Infância e da
Juventude não estão entendendo que essas cenas de violência foram
protagonizadas pelo pai deles, o ex-marido da mãe de santo”, afirmou Soares.
A defesa de Gama questiona
ainda o prazo dilatado para uma decisão definitiva, o que faz com que a mãe
esteja sem os filhos há mais de dois anos. A decisão liminar deveria ter
expirado em fevereiro de 2020, mas foi renovada em 24 de setembro por mais 120
dias. Ou seja, foram sete meses sem qualquer decisão judicial. “Quando a guarda
de 90 dias termina, daí em diante é ilegal, pois não está amparada em NADA”, me
escreveu Soares por mensagem de texto. O novo prazo deveria ter terminado em janeiro
do ano passado, mas também foi prolongado sem que a justiça se pronunciasse.
Apenas em maio de 2021, o juiz renovou o afastamento por tempo indefinido. Até
agora, não há uma sentença. “Isso é uma amputação da figura materna na vida dos
filhos”, afirmou Soares.
Josileide da Gama segura blusa do filho em sua
casa.
Foto: Brenda
Alcântara
Nesse período, Gama chegou a
comprar um chip de celular para poder se comunicar com os meninos. Em uma troca
de mensagens rápida à qual tive acesso, um deles interrompe a conversa com a
mãe, pois teme a chegada da tia. “Eu estou esquecendo o cheiro deles, não sei
mais o que é um abraço. Nunca mais escutei essa palavra ‘mãe’. Escuto dos meus
filhos de santo, mas da boca dos meus filhos, não”, lamentou Gama, em lágrimas.
Em nota, a promotora Soraya
Nóbrega afirmou que não poderia me conceder entrevista, pois o processo está em
segredo de justiça. Porém, reiterou que “o procedimento em questão não tem
nenhuma relação com a prática religiosa da genitora, mas, e somente, com a
conduta dela e com o seu dever de proteger os filhos menores de idade sob sua
guarda”. Segundo ela, “não coube juízo de valor em relação à prática religiosa
em si (que poderia ser de qualquer outra religião), mas a sua inadequação no
ambiente no qual as crianças conviviam”.
O Ministério Público disse
ainda que foram feitas diversas tentativas – não especificadas na nota – para
que essa mãe pudesse, sem abrir mão da religião, cuidar dos seus filhos. “As
crianças também foram ouvidas e manifestaram a insatisfação com os rituais na
sua residência onde habitavam e com a presença da pessoa envolvida [o pai de
santo Joalisson Gomes da Silva]”, afirmou o órgão em nota.
O Tribunal de Justiça da
Paraíba afirmou que, se o prazo “estourou”, como dito, Gama deve procurar um
advogado e questionar no processo. Soares afirmou que entrou com uma
representação no CNJ, mas o órgão arquivou o pedido, pois julgou que não houve
negligência judicial na questão.
Procurei também a irmã de
Josileide, para a qual o Judiciário concedeu a guarda provisória das crianças.
Joelma Gama desmente a relação da suspensão da guarda com questões de
desrespeito à religião. “Eu não tenho intolerância religiosa com ninguém. Cada
um tem a liberdade de escolher o que quer para a sua vida. Eu só tenho
intolerância à irresponsabilidade. Se ela perdeu a guarda dos filhos, foi por
conta de irresponsabilidade dela mesmo”, declarou.
Ritos demonizados
A maioria dos relatos que têm
chegado ao conhecimento dos juristas que trabalham com terreiros de religiões
afro-ameríndias mostra que o mais comum é uma mãe ser denunciada pelo pai, em
meio a um processo de separação litigioso, depois de ela levar os filhos a um
terreiro e iniciar as crianças na religião. Foi o que aconteceu com Juliana
Arcanjo, denunciada em uma delegacia pelo ex-marido por crime de lesão corporal
com violência doméstica agravada contra a filha, hoje com 12 anos.
O que Arcanjo fez foi levar a
menina para participar de um rito de iniciação no candomblé, no interior de São
Paulo, chamado de escarificação – cortes muito superficiais feitos na pele, em
várias regiões do corpo, com o objetivo de oferecer proteção à pessoa. O ritual
foi realizado em 2020 e, segundo a mãe, que também passou pelo procedimento,
por interesse da própria criança. Em função da denúncia, levada ao Conselho
Tutelar e ao Ministério Público, Arcanjo teve os poderes familiares suspensos
em fevereiro de 2021 e até hoje não recuperou a guarda da menina.
“O pai tem a crença dele e
julga a minha como errada, como prática satanista. Inclusive, já falou para a
minha filha que, quando eu morrer, vou para o inferno por causa da minha
religião”, ela me contou. A defesa alega que há intolerância religiosa na
denúncia e, para exemplificar, compara a acusação de maus tratos com rituais
praticados por outras religiões, como a circuncisão realizada por judeus e
muçulmanos ou mesmo a colocação generalizada de brincos em bebês e crianças.
“Eu nunca ouvi falar que algum judeu ou muçulmano teria ido para cadeia porque
uma criança é circuncidada”, afirmou o advogado de defesa, Hédio Silva Junior.
Gama com seu pai de santo e cuidador, Joalisson
Gomes da Silva. “A justiça não aceita que eu more com ele”, afirmou a
juremeira.
Foto: Brenda
Alcântara
Arcanjo foi absolvida na esfera
criminal em 15 de julho de 2021. Na decisão, o juiz do Tribunal de Justiça de
São Paulo Bruno Paiva Garcia afirmou que a tipificação da submissão da criança
à escarificação como “crime de lesão corporal revela inaceitável intolerância
religiosa”. De acordo com a sentença, “trata-se de uma lesão ínfima,
insignificante, que não causou prejuízo físico, psicológico ou sequer estético
à criança”.
O advogado de defesa aponta que
existe a incidência de dois fatores: “o Conselho Tutelar, em uma manifestação
absolutamente racista, preconceituosa e intolerante. E o pai, que também tem
utilizado no processo o argumento da opção religiosa da mãe como argumento
principal para manter essa guarda”.
Apesar da absolvição, a última
vez que mãe e filha se encontraram foi em janeiro de 2021. Um juiz, agora, está
escutando todos os envolvidos em entrevistas psicossociais para definir a
sentença no processo de guarda. A mãe já foi ouvida, mas, segundo ela, o pai
não compareceu na data prevista.
“Até para falar com vocês, eu
passei o dia inteiro chorosa”, desabafou Arcanjo. “Saber que estou passando por
essa situação, ser acusada de maltratar a sua própria filha, que você cuidou a
vida inteira. O que ele está fazendo comigo não tem tamanho de crueldade”.
Em nota, o escritório de
advocacia que representa o pai da criança, Satyro Sociedade de Advogados,
afirmou não poder dar detalhes do caso, por correr em segredo de justiça, mas
que “existem diversos outros fatos que não foram revelados pela genitora” e
ainda estão sendo apurados. “Afirmamos ainda, com veemência, que o caso nada
tem a ver com intolerância religiosa”, ressaltaram.
‘O Conselho Tutelar
não vai na Igreja Católica reclamar que as crianças estão vendo o padre tomar
um vinho’.
Residente do Distrito Federal,
a advogada Patricia Zapponi já foi acionada pelo menos três vezes para ir até a
delegacia defender uma mãe acusada de maus-tratos por levar um filho a um
terreiro de religião de matriz afro-ameríndia.
No candomblé, por exemplo, a
iniciação prevê que a pessoa fique no terreiro, em um quarto, recolhida,
durante 21 dias. Nesse momento, há um renascimento para a nova vida, e são
realizados rituais nos quais há também o corte de cabelo e as escarificações. “Há
um desconhecimento das religiões de matriz africana, que tem ritos que, se você
olhar a olho nu, vai dizer que é lesão corporal. Por isso, hoje oriento os
terreiros para já avisarem ao Conselho Tutelar quando vão recolher uma criança,
avisar que têm autorização dos pais”, explicou Zapponi.
Em alguns casos atendidos pela
advogada, a avó era evangélica, e o pai e a mãe estavam se separando. “Ela
ficou sabendo que a mãe levou a criança a um terreiro e fez uma denúncia ao
Conselho Tutelar, chamou a polícia, para falar de cárcere privado”. Era como se
a mãe estivesse deixando [o filho] sem comer, raspando a cabeça. “Foi preciso
chegar e explicar que é um rito de passagem”, detalhou.
O caso mais famoso desse tipo no
Brasil aconteceu Araçatuba, São Paulo, quando a manicure Kate
Ana Belintani perdeu a guarda da filha por 17 dias, depois que a avó materna da
criança alegou que a menina sofria maus-tratos em um centro de candomblé
frequentado por Belintani. Na sentença que restituiu a guarda, o juiz afirmou
que a própria adolescente, ao ser ouvida, disse estar de acordo com os ritos
pelos quais havia passado. O laudo pericial também concluiu que não houve lesão
corporal. “Minha filha sofre consequências [desse processo] até hoje, levo ela
no psicólogo, no psiquiatra”, afirmou Belintani.
No Brasil, os pais podem perder
o direito sob os filhos pelos seguintes motivos, de acordo com o Código Civil: morte dos
pais ou da criança; emancipação; maioridade; adoção; e decisão judicial de
destituição do poder familiar. A suspensão do poder familiar, como aconteceu
com Josileide, é provisória, e pode ocorrer por uma denúncia em investigação. A
denúncia pode vir via Conselho Tutelar, sendo investigada e acatada pelo
Ministério Público, e em seguida encaminhada para o Judiciário. Há também
pedidos de guarda dentro de um processo de separação entre
os responsáveis legais.
Para a diretora nacional do
Instituto Brasileiro de Direito de Família, Silvana do Monte Moreira, a
classificação desses rituais como maus-tratos não tem amparo legal. “Não há
qualquer possibilidade de uma religião de matriz africana, mesmo com todos os
seus ritos, estar inserida em pontos que levem, segundo as leis que temos no
Brasil, a uma suspensão do poder familiar”, disse.
Hédio Silva Junior complementa
que um dos motivos para o crescimento dos casos de perda de guarda atrelados a
possíveis intolerâncias religiosas é a penetração de religiosos neopentecostais
nos Conselhos Tutelares. “Esses órgãos têm uma função institucional
importantíssima no sistema de proteção e garantias dos direitos das crianças e
adolescentes, mas estão se prestando a esse papel infame. Você não vê o
Conselho Tutelar na Igreja Católica reclamando que as crianças estão vendo o
padre tomar um vinhozinho. Então, é algo direcionado”, defendeu.
Terreiros se precavêm
Em 2019, Maria
Estela viveu uma situação que nunca imaginou passar em seu templo de
candomblé de nação Ketu, em uma cidade do interior de Goiás. A pedido de uma
mulher que frequentava o local, iniciou o filho dela, então com 12 anos, na
religião. Como parte dos ritos, a criança teve a cabeça raspada e a alimentação
reduzida por alguns dias. O pai soube do ocorrido e denunciou ao Conselho
Tutelar, que foi até o terreiro com a Polícia Militar para buscar a criança.
O episódio foi veiculado em
veículos de imprensa locais como um resgate de uma criança maltratada em
“rituais espirituais”. Pessoas foram até a frente do terreiro gritar. Maria
Estela precisou ir até a delegacia prestar esclarecimentos. “Minha saúde era
inabalável, mas a pressão psicológica foi tão grande. Eu fiquei um ano sem
assistir televisão, sem pegar no celular, perdi clientes, minha vida foi para o
buraco, porque fiquei totalmente desequilibrada”, lembrou ao conversar comigo.
Para evitar que casos
semelhantes se repitam, hoje Maria Estela recorre a um mecanismo cada vez mais
comum entre os terreiros do Distrito Federal e de Goiás: pede ao pai ou mãe que
será iniciado na religião para preencher de próprio punho um documento
reconhecendo que está ciente do que ocorrerá. Depois, o papel é levado para
cartório, para reconhecimento de firma. “Infelizmente, a lei do nosso país não
entende os cultos e as religiosidades de matrizes africanas”, se queixou.
Formalizar os terreiros e
cuidar desse documento é uma orientação passada pela OAB do Distrito Federal
para evitar novas criminalizações de ritos de iniciação de crianças e
adolescentes. Para Pai Rodrigo Juremeiro, que mantém um templo em Valparaíso,
estado de Goiás, e adotou a mesma prática de Maria Estela, o próprio fato de
precisar haver um documento para iniciar uma criança na religião já mostra a
diferença de tratamento. “A gente já vive nessa defensiva, né? Porque se a
Constituição garante o direito de liberdade de credo, eu não precisaria,
conceitualmente, ficar me prevenindo contra essas coisas”, argumentou. Para uma
criança fazer uma crisma ou primeira comunhão, ritos católicos, por exemplo,
esse não é um requisito.
Nas religiões afro-ameríndias,
as tradições são passadas de maneira oral. Não há um acolhimento obrigatório
para iniciar uma pessoa na religião, nem uma idade pré-determinada. “A macumba
vê a criança e a infância de forma eufórica. A gente não precisa de um rito
para limpar eles de qualquer pecado original. Não está na nossa cosmo-percepção
de mundo. Então, o ingresso dela na religião, por meio de iniciações ou não, é
visto sempre caso a caso”, explicou a professora da Unifesp e coordenadora do
Grupo de Pesquisa LAROYÊ – Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras,
Ellen de Lima Souza.
Para a pesquisadora, os
processos de perda de guarda são mais um mecanismo de ataque e racismo
religioso. “Não se está tirando só o direito da mãe, mas de toda uma
comunidade. Você proíbe a criança de frequentar esse espaço onde ela é
celebrada, ouvida, cuidada. Eles sabem muito bem que estão mexendo naquilo que
é mais importante para a gente”, acrescenta Souza, que hoje acompanha um caso
como os relatados aqui e tem conhecimento de pelo menos outras 15 crianças que
estão imersas em processos de guarda cujos motes são a religião.
Fonte https://theintercept.com
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