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Polícia do RJ impõe inferno judicial a negros inocentes incluídos em álbum de suspeitos


 

Sistema falho de reconhecimento fotográfico faz com que inocentes respondam a processos sucessivos e passem de meses a anos na prisão.

Deivid Almeida costuma pedir a um amigo advogado para conferir se há algum processo contra ele. O hábito surgiu depois de ser criminalmente acusado de um delito – porte de arma de fogo – pela primeira vez, em 2012. Condenado, pagou a pena com horas de serviço comunitário, mas em liberdade. Desde então, outros cinco processos foram movidos contra o morador do Complexo do Lins, conjunto de favelas da zona norte do Rio. Três ações tinham apenas uma prova contra ele: o reconhecimento de seu rosto num álbum com fotos de suspeitos em delegacias diferentes.

Alan Dias e Anderson Lima, também moradores do complexo, negros e de baixa escolaridade, passaram pelo mesmo problema. Nos processos acumulados pelos três ao longo dos últimos oito anos, uma ou mais vítimas os reconheceram num álbum com fotos de suspeitos, e isso bastou para que entrassem num ciclo interminável de acusações, audiências e visitas à Defensoria Pública em busca da absolvição – que pode levar anos para chegar, estejam os suspeitos em liberdade ou não. Dias, por exemplo, passou mais de três anos preso por um crime que não cometeu.

Apenas entre junho de 2019 e março de 2020, só na cidade do Rio de Janeiro, 53 pessoas – 80% delas negras – responderam injustamente por acusações baseadas em reconhecimento fotográfico, segundo a Defensoria Pública do estado. Algumas delas, mais de uma vez. Ou seja, as vítimas identificaram o réu nos álbuns de suspeitos apresentados nas delegacias, mas quando chegaram à audiência, no encontro presencial, perceberam o equívoco: já não tinham tanta certeza de que o autor do crime era a pessoa indiciada. Sem provas concretas, todos foram absolvidos. O problema é que, além do desgaste emocional e por vezes financeiro, em 86% desses casos os réus tiveram mandados de prisão preventiva decretados e cumpriram penas, que variaram entre cinco dias e três anos, também de acordo com a Defensoria.

“Muitas vezes, a pessoa inocente é presa e leva anos para conseguir apagar as consequências de tudo isso”, afirma a defensora Lucia Helena de Oliveira, coordenadora do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. “Principalmente quando ela passa tempos na prisão, perde o emprego. Em alguns casos, surgem novos processos o tempo todo contra elas”.

A defensora lembra do caso de um jovem que respondia a vários processos, todos sustentados em reconhecimento fotográfico. Era sempre absolvido, mas os casos contra ele não paravam de pipocar. A polícia não atendeu ao pedido de retirada da fotografia dele do álbum, e foi preciso que a defensoria entrasse com um mandado de segurança, acatado pelo juiz, para que o rosto do rapaz deixasse de ser apresentado entre o rol de suspeitos.

Do Facebook para o banco de réus

Muitos dos acusados injustamente, que não tinham antecedentes criminais, não entendem como seus rostos acabaram nos álbuns. Alan Dias se transformou em suspeito de crimes da noite para o dia. Em 29 de maio de 2015, quatro homens roubaram um carro, o celular de um taxista e dois estabelecimentos comerciais. Na tarde seguinte, anunciaram um assalto em um hortifruti, trocaram tiros com homens armados que estavam em frente ao local, mataram um funcionário, roubaram e fugiram no carro de um policial de folga que comprava um cigarro.

Pouco tempo após o início das investigações, os rostos de Dias e de um amigo apareceram entre os suspeitos. “Pegaram umas fotos nossas do Facebook no Maracanã”. Segundo consta no inquérito, um “cruzamento de dados” feito pela polícia relacionou os dois àquela série de crimes. Começaram, então, a convocar as testemunhas e apresentar fotos. Dias foi apontado por três testemunhas como “o cara negro de dread, com touca e coisas coloridas no cabelo” (como consta no inquérito), responsável por atirar e matar o funcionário, e o amigo como o rapaz “mais claro”.

Em fotos apresentadas no álbum, Dias aparece com um corte estilo black baixo, e não com dreads, e sua defesa provou, com mensagens e fotos em aplicativos de conversas que, dias antes dos crimes, ele havia raspado o cabelo. Ainda assim, o juiz Tiago Fernandes de Barros decretou a prisão preventiva.

‘Se entrego um álbum com fotos de sujeitos aleatórios, a chance de você pescar alguém que não tem nada a ver com o assunto é muito alta’.

Anderson Lima viveu uma situação diferente. No final de 2016, seu tio Lídio Macedo morreu em um confronto com a polícia. Em dezembro daquele ano, durante outra operação, Anderson levou um tiro e parou no hospital. Até então, ele só tinha uma anotação antiga, de 2007, por crime de trânsito. Mas bastou ser baleado pela Polícia Militar para os processos começarem a surgir – todos por roubo à mão armada, com o uso de reconhecimento fotográfico. Hoje, ele coleciona cinco acusações, com duas absolvições. “Todos são fruto da mesma coisa: reconheceram minha foto na delegacia”, disse.

Deivid Almeida se envolveu em mais problemas. Em 2012, segundo a Polícia Militar, ele estava na garupa de uma moto, segurando uma pistola, quando ele e o piloto viram uma viatura e tentaram fugir. Foram presos em flagrante. Almeida alega que voltava de um baile funk quando os policiais os abordaram. Em seu depoimento, afirma que os agentes pediram dinheiro, e, como não receberam, plantaram a arma na delegacia. Ele e o amigo passaram 22 dias presos. Naquele mesmo ano, no dia da audiência, Almeida foi preso mais uma vez por suposto envolvimento com o tráfico. Passou nove meses na cadeia até ser absolvido por falta de provas. Já a acusação de porte ilegal de arma terminou com a condenação convertida em horas de serviço comunitário.

Dois anos depois, em 2014, ele se meteu em uma confusão com policiais durante um protesto organizado por moradores do Lins após uma garota de sete anos ser baleada dentro de casa. Acabou preso por um mês e meio, mas teve seu nome excluído do processo. Desde então, outros três processos apareceram no nome dele com base apenas em reconhecimentos fotográficos.

Pescaria de suspeitos

Cada delegacia registra dezenas de ocorrências ao longo do dia, e o álbum de suspeitos é um dos elementos que ajuda a Polícia Civil a lidar com essa demanda. Mas a psicóloga Juliana Ferreira da Silva, especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública, ressalta que ele não deve ser usado como forma única de reconhecimento. “Acaba sendo uma pescaria. Se entrego um álbum com fotos de sujeitos aleatórios, a chance de você pescar alguém que não tem nada a ver com o assunto é muito alta. A gente vê álbuns com 100 pessoas”.

Até porque as testemunhas falham. E muito. Uma pesquisa do Innocence Project, associação internacional sem fins lucrativos especializada em analisar condenações injustas, dissecou mais de 300 casos de condenações injustas que o projeto conseguiu reverter nos Estados Unidos. Em 71% dos casos, os sujeitos haviam sido reconhecidos por vítimas e testemunhas. “A memória não é um registro escrito num caderno, não é como uma foto. A memória é viva, se modifica no corpo da gente”, explicou Ferreira. “Uma investigação não pode só se basear no reconhecimento, é preciso outras provas. A pessoa pode se lembrar só do cabelo, isso é muito comum. As testemunhas não olham muito para a face, quanto mais amedrontadas, menos olham. Elas se lembram mais da arma”.

Um dos processos de Deivid Almeida serve como exemplo. Três entregadores de uma rede de eletrodomésticos dirigiam pelas ruas do Rio quando foram abordados por um sujeito armado numa moto. Tiveram de segui-lo até uma favela, onde um grupo armado retirou toda a mercadoria do caminhão. Ao chegarem na delegacia, narraram o fato e receberam um álbum de fotos. Cada um apontou para seis suspeitos diferentes – só um nome coincidiu. Almeida só foi reconhecido uma vez como o homem que descarregou as coisas do caminhão. Outro entregador apontou um sujeito diferente. Mesmo assim, a acusação segue, sustentada exclusivamente nos testemunhos e reconhecimentos, e Almeida é réu no processo.

“Isso abre uma avenida para o racismo”, argumenta Guilherme Pimentel, ouvidor da Defensoria Pública. “Acabam empurrando processos para quem se enquadra no perfil do inimigo, que é construído historicamente em torno dos descendentes de pessoas escravizadas: o jovem negro e favelado”.

No caso de Alan Dias, as testemunhas afirmaram na audiência presencial que aquela não era a mesma pessoa apontada por elas na delegacia. Só uma delas, mesmo sem ter absoluta certeza, manteve o reconhecimento.

A polícia usou outros métodos para tentar provar o envolvimento de Dias e dos outros suspeitos. Fez exames para identificar as digitais nos veículos roubados, buscou imagens de câmeras de segurança e comparou os traços dos acusados com os homens que aparecem nas gravações. Nada disso colocava Dias nas cenas do crime – só a palavra de três pessoas na delegacia.

Quando a apelação chegou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a desembargadora Rosita Maria de Oliveira Netto, relatora do caso, constatou as incoerências e absolveu o réu. Seus colegas acompanharam o voto. Só que, até ali, Dias já havia passado mais de três anos preso injustamente,  viu seu casamento desmoronar e precisou vender uma casa no Lins para pagar os honorários da advogada que o defendeu.

Fotos sugestionáveis

O Código de Processo Penal prevê, no artigo 227, o “reconhecimento de objeto” – ou seja, de fotografias. A vítima ou testemunha precisa primeiro descrever o suspeito antes de ser confrontada com o álbum. Nos oito processos que consultei, em quatro deles as vítimas ou testemunhas não haviam descrito o criminoso antes de abrir o álbum. Em outro, a descrição se resumia a “homem negro e alto”.

Assim, advogados e defensores questionam os procedimentos realizados nas delegacias. “A sugestionabilidade é uma coisa que você tem que controlar muito com testemunhas oculares. Imagina se eu pergunto para você assim: ‘A pessoa que levou seu celular tinha cabelo raspado, né?’ Isso aciona outra memória, contamina o relato. É preciso que se usem de técnicas apropriadas durante a entrevista investigativa”, explicou Ferreira.

Não há nada mais sugestivo do que se deparar com a foto de um homem preso – aquela de filme, com uma régua ao fundo, na parede. Dos três processos que acessei de Anderson Lima, aparecem fotos como essa em dois, indicando que ele já tinha ficha na delegacia. “A polícia não deve nem dar nenhuma informação, não deve nem sugerir que o suspeito que estará na formação [ou nas fotos] foi preso, não pode dizer nada sobre ele”, afirmou Ferreira.

Ao descumprir essas regras, a Polícia Civil acaba com as chances de conduzir uma investigação séria e prejudica diretamente o direito de defesa de quem se vê implicado em crimes por conta dos erros de procedimento da corporação. “Visitei um homem preso em Bangu com 78 processos, todos por reconhecimento de foto. Eu não estou discutindo se ele é culpado ou inocente. Ele já tem diversas absolvições, mas segue preso”, contou Oliveira.

Alan Dias recebeu sua segunda absolvição em 21 de março deste ano. Era um caso bem simples para a justiça: bastava olhar para a cara de Alan e a foto estampada no álbum. Não são a mesma pessoa.

Ele e seus dois vizinhos do Lins se dizem cansados de serem acusados de atos que não cometeram só por terem tido suas fotos incluídas nos álbuns da delegacia. Cada processo assusta: Deivid Almeida, que trabalha com mototáxi, passou um tempo sem sair de casa entre janeiro e fevereiro, com medo de ser alvo de um mandado de prisão e acabar, de novo, na cadeia.

Se tudo correr conforme a regra, nem ele, nem ninguém será preso preventivamente apenas por ter sido apontado por testemunhas no álbum de suspeitos. Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que as diretrizes do artigo 226 do Código de Processo Penal, referenciadas no artigo 227, deixem de ser recomendações para serem obrigatórias. “Foi uma grande virada na jurisprudência”, relatou Oliveira.

Além da decisão do STJ, no Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça publicou um aviso em janeiro deste ano recomendando a reavaliação de prisões preventivas decretadas com base apenas no reconhecimento por foto. “Ainda é muito prematuro dizer se isso tem sido cumprido ou não. Mas temos a expectativa de um caminho melhor daqui para frente”, ele me disse.

Em nota, a Polícia Civil informou que “orientou, desde outubro de 2020, que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos”. Reforçou, ainda, que o reconhecimento por foto é importante no início da investigação, mas “deve ser ratificado por outras provas técnicas”.

Falta colocar isso em prática.

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Fonte.https://theintercept.com/brasil/

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