"É humilhante constatar que não haja da parte das mais
altas autoridades a coragem patriótica para encaminhar, dentro da legalidade
jurídica, a destituição ou o impeachment de um presidente que mostra sinais
inequívocos de incapacidade política, ética e psicológica para presidir uma
nação das proporções do Brasil", escreve o teólogo Leonardo Boff.
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Quatro sombras escuras pairam sobre um país solar que nunca
puderam ser dissipadas pela nossa consciência e inconsciência coletivas: a
sombra do genocídio dos povos originários,os donos primeiros destas terras.De
seis milhões que eram, sobraram apenas um milhão, a maioria por não suportar o
trabalho escravo ou pelas doenças dos invasores contra as quais não possuíam
nem hoje possuem imunidade. A sombra da colonização que depredou nossas terras
e florestas e nos tornou sempre dependentes de alguém de fora, impedidos de
forjar nosso próprio destino.
A sombra da escravidão, nossa maior vergonha nacional, por
termos transformado pessoas trazidas de África em escravos e carvão a ser
consumido nos engenhos de cana de açúcar. Jamais vistas como pessoas e filhos e
filhas de Deus mas como “peças” a serem compradas e vendidas, construíram quase
tudo o que existe neste país. E hoje, tidos por preguiçosos e presos, compõem
mais da metade de nossa população, jogados nas periferias; suportam o ódio e o
desprezo antes imposto aos seus irmãos e irmãs das senzala e agora transferidos
a eles com uma violência tal como mostrou o sociólogo Jessé Souza (A elite do
atraso:da escravidão à Lava Jato, 2007 p.67) até perderem o sentido de sua
dignidade.
A sombra das elites do atraso que sempre ocuparam o frágil
Estado, usando-o para seu benefício. Nunca forjaram um projeto de nação que
incluísse a todos, apenas, com as artes perversas da conciliação entre os
endinheirados, apenas um projeto só para eles. Não bastava desprezar os
marginalizados, mas rachar-lhes as cabeças, caso se levantassem, como ocorreu
várias vezes na sua heroica história da resistência e da rebeldia.
Quando um sobrevivente dessa tribulação, por caminhos de
pedras e de abismos, chegou a ser presidente e fez alguma coisa para ajudar a
seus irmãos e irmãs, logo criaram as condições perversas para destruir sua
liderança, excluindo-o da vida pública e, por fim, a ele e a sua sucessora
apeá-los do poder. Essa sombra ganhou contornos de “procelosa tempestade e
noturna sombra (Camões) sob o atual governo que não ama a vida, mas exalta a
tortura, louva os ditadores, prega o ódio e larga o povo à sua própria sorte,
atacado letalmente por um vírus, contra o qual não tem nenhum projeto de
salvamento e, desumano, se mostra incapaz de qualquer gesto de solidariedade.
Estas sombras, por serem expressão de desumanização, se
aninharam na alma dos brasileiros e brasileiras e raramente puderam conhecer a
luz. Agora criaram-se as condições ideológicas e políticas para serem lançadas
ao ar como lavas de um vulcão, feitas de boçalidade, de violência social
generalizada, de discriminações, de raiva e de ódio de grandes porções da
população. Seria injusto culpar a elas. As elites do atraso se internalizaram
em suas mentes e corações para fazer que se sintam culpadas de sua sorte e
acabem por fazerem seu o projeto deles que, na verdade, é contra eles. O pior que
pode acontecer é o oprimido internalizar o opressor com o projeto enganoso de
bem estar, sempre lhes sendo negado.
Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido As raízes do
Brasil (1936) difundiu uma expressão mal interpretada em benefício dos
poderosos, de que o brasileiro é “o homem cordial” pela lhanesa de seu trato.
Mas teve um olho observador e crítico para logo acrescentar que “seria engano
supor que essa virtude da cordialidade, possa significar “boas maneiras” e
civilidade (p.106-107) e arremata;” a inimizade bem pode ser cordial como a
amizade, pois, que uma e outra nascem do coração” (p.107 nota 157).
Pois, no atual momento o “cordial da incivilidade” brasileiro
irrompe do coração, mostrando a sua forma perversa de ofensa, calúnia, palavras
de baixo calão, fake news, mentiras diretas, ataques violentos a negros,
pobres, quilombolas, indígenas, mulheres, LGBT políticos de oposição, feitos
inimigos e não adversários. Irrompeu, violenta, uma política oficial,
ultraconservadora, intolerante, com conotações fascistoides. As mídias sociais
servem de arma para todo tipo de ataque, de desinformação, de mentiras que mostram
espíritos vingativos, mesquinhos e até perversos. Tudo isso pertence ao outro
lado da “cordialidade” brasileira hoje exposta à luz do sol e à execração
mundial.
O exemplo vem do próprio governo e de seus fanáticos
seguidores, De um presidente se esperaria virtudes cívicas e o testemunho
pessoal de valores humanos que gostaria vê-los realizados em seus cidadãos. Ao
contrário, seu discurso é eivado de ódio, desprezo, de mentiras e de boçalidade
na comunicação. É tão inculto e tacanho que ataca o que é mais caro à uma
civilização que é sua cultura, seu saber, sua ciência, sua educação, as
habilidades de seu povo e o cuidado da saúde e da riqueza ecológica nacional.
Nunca tanta barbárie, nos últimos cinquenta anos, tomou conta
de algum país, como no Brasil, aproximando-o ao nazifascismo alemão e italiano.
Estamos expostos à irrisão mundial, feitos país pária, negacionista do que é
consenso entre os povos. A degradação chegou ao ponto de o chefe de Estado
fazer o humilhante rito de vassalagem e de submissão ao presidente mais bizarro
e “estúpido” (P. Krugman) de toda a história norte-americana.
A nossa democracia sempre foi de baixa intensidade.
Atualmente se transformou numa farsa, pois a constituição não é respeitada, as
leis são atropeladas e as instituições funcionam somente quando os interesses
corporativos são ameaçados. Então a própria justiça se torna conivente face a
clamorosas injustiças sociais e ecológicas, como a expulsão de 450 famílias que
ocupavam uma fazenda abandonada, transformando-a em grande produtora de
alimentos orgânicos; arranca crianças agarradas a seus cadernos e lhes arrasa a
escola; tolera o desmatamento e as queimadas do Pantanal e da floresta
amazônica e o risco de genocídio de inteiras nações indígenas, indefesas face
ao Covid-10.
É humilhante constatar que não haja da parte das mais altas
autoridades a coragem patriótica para encaminhar, dentro da legalidade
jurídica, a destituição ou o impeachment de um presidente que mostra sinais
inequívocos de incapacidade política, ética e psicológica para presidir uma
nação das proporções do Brasil. Podem fazer-se ameaças diretas à mais alta
corte, de fechá-la, de fazer proclamas à volto ao regime de exceção com a
repressão estatal que implica e nada acontece por razões arcanas.
As oposições, duramente difamadas e vigiadas, não conseguem
criar uma frente compartilhada para opor-se à insensatez do poder atual.
A brutalização nas relações sociais e especialmente entre o
povo simples não deve ser imputada a ele, mas às classes oligárquicas do atraso
que lograram internalizar neles seus preconceitos e visão obscurantista de
mundo. Estas classes nunca permitiram que vingasse aqui um capitalismo
civilizado, mas o mantém como um dos mais selvagens do mundo, pois conta com os
apoios dos poderes estatais, jurídicos, midiáticos e policiais para abateram
qualquer oposição organizada. A “racionalidade econômica” se revela
desavergonhadamente irracional pelos efeitos maléficos sobre os mais desvalidos
e para as políticas sociais destinadas aos socialmente mais sofridos.
Esse é um texto indignado. Há momentos em que o intelectual
se obriga por razões de ética e de dignidade de seu ofício, a deixar o lugar do
saber acadêmico e vir à praça e externar sua iracúndia sagrada. Para tudo há
limites suportáveis. Aqui ultrapassamos a tudo o que é dignamente suportável,
sensato, humano e minimamente racional. É a barbárie instituída como política
de Estado, envenenado as mentes e os corações de muitos com ódios e rejeições e
levando à frustração e à depressão a milhões de compatriotas, num contexto dos
mais atrozes que tiram de nosso meio pelo vírus invisível mais de cem mil entes
queridos. Calar-se equivaleria render-se à razão cínica que, insensível,
assiste o desastre nacional. Pode-se poder tudo, menos a dignidade da recusa,
da acusação e da rebeldia cordial e intelectual.
Leonardo Boff
Ecoteólogo, filósofo e escritor. Escreveu Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, Vozes 1995/2015; em espanhol por Trotta, Madrid 1996, Dabar, México 1996
172 artigos
Fonte Brasil247.com
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