Carta de Despedida
DESPEDIDA
Assoc. Delegados de Policia de Sergipe, 26/02/2009
CRÔNICA:
*Por Mário de Carvalho Leony,
DESPEDIDA
Eu, Mário Leony, delegado de polícia, brasileiro, amasiado, ou melhor, “homosiado”, despeço-me da Delegacia Especial de Homicídios com a seguinte reflexão: “HOMOFOBIA MATA!”.
Apenas no ano de 2008 três travestis assassinadas em Aracaju, derramamento de sangue que talvez justifique o motivo pelo qual as “monas” não se encorajam a denunciar os cotidianos episódios de violência sofridos.
Considerado como de última categoria, o sangue desperdiçado em via pública também “justifica” a proibição do homossexual em ser doador, impedido de exercer sua cidadania através de um ato de solidariedade. Mas peraê! Homossexual também quer ser apontado por sua nobreza e desprendimento no trato com o outro. O banco de sangue se recusa à doação mesmo provado que, em verdade, não existem grupos de risco e sim comportamentos de risco, razão de muitas mulheres serem contaminadas pelo HIV através dos seus maridos, orgulhosos de exercitarem sua masculinidade e virilidade sem prevenção. Orientação sexual seria então critério de seleção recomendável por nossos gestores em saúde pública?
Três travestis assassinadas, umas delas mais “adaptada” à minha burguesa realidade, no bairro onde resido, uma das poucas que não vivia da prostituição apesar de ter perdido cedo o vínculo com familiares. Cláudia, cozinheira de “mão cheia” num barzinho do Grageru. Mas se fosse prostituta, seria menos chocante a passagem bíblica em versão contemporânea? Jesus Cristo! Travesti apedrejada em via pública e pouco importa quem atirou a primeira pedra.
Quando mortas por arma branca são múltiplos os golpes desferidos, quando atingidas por arma de fogo são inúmeros os disparos deflagrados, desperdício de sangue, de energia e de “balas”. Minhas “transfeministas” seria humilhante e indigno vocês renunciarem à graça e o privilégio de terem nascido machos?
Cláudia, quantos golpes levastes? O último foi um golpe certeiro a me atingir! Vontade de voltar no tempo e adentrar aquela cozinha para elogiar o seu tempero e dar-te um beijo.
Os algozes, por vezes homossexuais ego-distônicos, oprimidos por sua homofobia internalizada, muitos são “garotos de programa” e justificam que “transam” com homossexuais apenas pelo dinheiro, mas em verdade vivenciam um conflito insuportável ao deparar-se com o desejo e o prazer “proibidos”. A homofobia internalizada ainda revela o alto índice de suicídios entre jovens homossexuais por não conseguirem se afirmar e se situar em família e em sociedade.
Também aconteceu latrocínio homofóbico em Aracaju no ano de 2008, e não obstante o escopo seja subtrair para si algo que pertença a outrem mediante violência ou grave ameaça, latrocínios são crimes homofóbicos, pois suas vítimas vivenciam seu homoerotismo na clandestinidade das ruas e madrugadas, por conta da sua não aceitação social maior a vulnerabilidade.
Queria revê-lo querido Well, amigo por pouco tempo, mas que me recepcionou com tanta gentileza em sua casa com seu companheiro de mais de quatorze anos de convivência, que atualmente busca anular o arrolamento que não o contempla apesar de vocês terem construído juntos aquilo que chamavam lar. Queria voltar no tempo para dar-te um abraço e aconselhá-lo a não perder a pureza, a não deixar de sorrir para qualquer um na rua, mesmo que isso custe sua vida. Você dá vida a esses versos: “Viver ou morrer é o de menos, ser feliz ou não questão de talento”.
Despeço-me da Delegacia de Homicídios pranteando o último suicídio com o seguinte fragmento em diário intitulado: “O diário dos últimos dias de minha vida”. A vítima de sua homofobia internalizada, envenenada pelo preconceito antes de ingerir raticida, despede-se da pessoa amada com o seguinte pedido: “Quando for orientar os homossexuais diga que nunca seremos felizes e completos”. Ex-seminarista, certamente atormentado pela idéia da homossexualidade associada ao pecado e ao conceito tradicional de família heterossexista.
Queria ter o poder de voltar no tempo, arrombar a porta daquele quarto de hotel e convencê-lo xará que podemos sim ser felizes, que duas pessoas que se amam e vivem juntas já constituem uma família. A família pode até aumentar se adotarmos uma criança com nossos parceiros, eleita para ser amada, coisa linda no mundo onde crianças são abortadas, mergulhadas em esgotos e abandonadas em lixeiras, pois a mesma Igreja proíbe os ignorantes de usarem preservativos, adstritos à velha cultura hebraico-judaica que preconiza a ideologia pró-natalista de que todo o desperdício do sêmen constitui um comportamento reprovável, a exemplo do coito interrompido, da masturbação e da própria homossexualidade.
Crescei-vos e multiplicai- vos é uma assertiva desatualizada xará, orgulhe-se por contribuir para o controle da natalidade num mundo tão devastado, troque seu cachorro por uma criança pobre, ou melhor, adote ambos e fique grávido de amor. Sinta indignação quando o corpo de um homossexual for encontrado com duas ripas de madeira em forma de cruz sobre suas nádegas, mas peça ao Senhor que perdoe seus agressores, pois eles não sabem o que fazem.
Perdoe Senhor os falsos profetas, religiosos fundamentalistas que fomentam a violência quando boicotam qualquer projeto de lei que venha a reconhecer nossos direitos civis, pois religiões viraram empresas que financiam mandatos, enquanto somos apenas uma minoria, “insignificante eleitorado”.
Lembre-se xará, que o revolucionário Jesus nunca condenou a homossexualidade e sempre pregou a compaixão entre as pessoas. Assuma sua verdade enquanto cristão e gay. Sinta felicidade e não melancolia por ser as duas coisas.
Que contradição é essa xará? Darcy Ribeiro constatar a existência dos “kudinas”, índios do Mato Grosso do Sul, homens que se comportavam como mulheres, reconhecidos como grandes artistas e plenamente integrados à sua tribo. A confirmação pelo Dr. Luiz Mott de igual prática tradicional e pré-colonial do homoerotismo masculino e feminino na região do Congo-Angola de onde vieram nossos negros. O degredo para o Brasil de muitos “pederastas” condenados pela Inquisição portuguesa. Que contradição é essa? Vivermos em território tão “fértil” para amarmos livre e “impunemente”, em um estado democrático de direito e tutelados por uma constituição cidadã, tudo em letra minúscula para protestarmos contra tanta hipocrisia.
Apesar de países fundamentalistas ainda condenarem seus homossexuais à forca, o Brasil é o campeão de assassinatos, um homossexual morto a cada três dias e ninguém se importa.
Queria voltar no tempo xará, para dizer que talvez estejamos juntos quando envelhecermos, caso nossos companheiros já não estejam vivos, poderíamos até fundar um asilo gay para abalar. Imagine! Jogar dominó e assistir ou ler jornais em sua maioria homofóbicos seria u ó! Não, pensando bem, melhor que criar mais um gueto seria o despertar de todos para o respeito à diversidade.
Por oportuno, onde estão e o que fazem nossos idosos gays? Nem nos guetos eles estão! Mas certamente nem todos morreram de AIDS, assassinados ou “suicidados”, os três únicos destinos vislumbrados por nossos pais. Muitos ainda estão vivos. Gay também morre de “morte morrida” xará!
Que contradição é essa de um país onde juiz imbecil sentencia o futebol como esporte apenas para macho, enquanto um dos eventos arrolados como modelo quando da candidatura do Brasil para sediar a copa do mundo foi a Parada Gay de São Paulo, em letras garrafais para enfatizar nosso ORGULHO, exemplo de organização e criatividade a mobilizar milhares de pessoas a cada ano, numa das poucas manifestações coletivas, políticas e pacíficas de cidadania a transcender a dor com irreverência, mas com espaço também para a denúncia dos diversos abusos sofridos.
Vivamos meu xará, nem que seja através da nossa luta e esperança de que um dia possamos caminhar de mãos dadas na rua e a expressão do nosso afeto não se confunda com “vulgaridade”, nossas uniões sejam reconhecidas, nossos filhos tenham dois pais em seus registros, com direitos sucessórios reconhecidos.
Viver não é simplesmente deixar os dias nos consumirem, honremos nossa vida e nossa dignidade! Você não está sozinho xará, vontade de morrer é coisa do passado, acredite em mim, eu também me sentia assim. Veja como o arco íris brilha bonito lá fora e deixa eu te abraçar. Vivamos por nosso prazer e para lutarmos por este ideal, por um mundo com mais encontros e menos despedidas tão prematuras.
Mário de Carvalho Leony
Delegado de Polícia Civil de Estado de Sergipe
Especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública - UFS
Especialista em Ciências Criminais - Unama
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