Apenas entre junho de 2019 e março de 2020, só na cidade do Rio de Janeiro, 53 pessoas – 80% delas negras – responderam injustamente
por acusações baseadas em reconhecimento fotográfico, segundo a
Defensoria Pública do estado. Algumas delas, mais de uma vez. Ou seja,
as vítimas identificaram o réu nos álbuns de suspeitos apresentados nas
delegacias, mas quando chegaram à audiência, no encontro presencial,
perceberam o equívoco: já não tinham tanta certeza de que o autor do
crime era a pessoa indiciada. Sem provas concretas, todos foram
absolvidos. O problema é que, além do desgaste emocional e por vezes
financeiro, em 86% desses casos os réus tiveram mandados de prisão
preventiva decretados e cumpriram penas, que variaram entre cinco dias e
três anos, também de acordo com a Defensoria.
“Muitas vezes, a pessoa inocente é presa e leva anos para conseguir
apagar as consequências de tudo isso”, afirma a defensora Lucia Helena
de Oliveira, coordenadora do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro. “Principalmente quando ela passa tempos na
prisão, perde o emprego. Em alguns casos, surgem novos processos o tempo
todo contra elas”.
A defensora lembra do caso de um jovem que respondia a vários
processos, todos sustentados em reconhecimento fotográfico. Era sempre
absolvido, mas os casos contra ele não paravam de pipocar. A polícia não
atendeu ao pedido de retirada da fotografia dele do álbum, e foi
preciso que a defensoria entrasse com um mandado de segurança, acatado
pelo juiz, para que o rosto do rapaz deixasse de ser apresentado entre o
rol de suspeitos.
Do Facebook para o banco de réus
Muitos dos acusados injustamente, que não tinham antecedentes
criminais, não entendem como seus rostos acabaram nos álbuns. Alan Dias
se transformou em suspeito de crimes da noite para o dia. Em 29 de maio
de 2015, quatro homens roubaram um carro, o celular de um taxista e dois
estabelecimentos comerciais. Na tarde seguinte, anunciaram um assalto
em um hortifruti, trocaram tiros com homens armados que estavam em
frente ao local, mataram um funcionário, roubaram e fugiram no carro de
um policial de folga que comprava um cigarro.
Pouco tempo após o início das investigações, os rostos de Dias e de
um amigo apareceram entre os suspeitos. “Pegaram umas fotos nossas do
Facebook no Maracanã”. Segundo consta no inquérito, um “cruzamento de
dados” feito pela polícia relacionou os dois àquela série de crimes.
Começaram, então, a convocar as testemunhas e apresentar fotos. Dias foi
apontado por três testemunhas como “o cara negro de dread, com touca e
coisas coloridas no cabelo” (como consta no inquérito), responsável por
atirar e matar o funcionário, e o amigo como o rapaz “mais claro”.
Em fotos apresentadas no álbum, Dias aparece com um corte estilo
black baixo, e não com dreads, e sua defesa provou, com mensagens e
fotos em aplicativos de conversas que, dias antes dos crimes, ele havia
raspado o cabelo. Ainda assim, o juiz Tiago Fernandes de Barros decretou
a prisão preventiva.
Anderson
Lima viveu uma situação diferente. No final de 2016, seu tio Lídio
Macedo morreu em um confronto com a polícia. Em dezembro daquele ano,
durante outra operação, Anderson levou um tiro e parou no hospital. Até
então, ele só tinha uma anotação antiga, de 2007, por crime de trânsito.
Mas bastou ser baleado pela Polícia Militar para os processos começarem
a surgir – todos por roubo à mão armada, com o uso de reconhecimento
fotográfico. Hoje, ele coleciona cinco acusações, com duas absolvições.
“Todos são fruto da mesma coisa: reconheceram minha foto na delegacia”,
disse.
Deivid Almeida se envolveu em mais problemas. Em 2012, segundo a
Polícia Militar, ele estava na garupa de uma moto, segurando uma
pistola, quando ele e o piloto viram uma viatura e tentaram fugir. Foram
presos em flagrante. Almeida alega que voltava de um baile funk quando
os policiais os abordaram. Em seu depoimento, afirma que os agentes
pediram dinheiro, e, como não receberam, plantaram a arma na delegacia.
Ele e o amigo passaram 22 dias presos. Naquele mesmo ano, no dia da
audiência, Almeida foi preso mais uma vez por suposto envolvimento com o
tráfico. Passou nove meses na cadeia até ser absolvido por falta de
provas. Já a acusação de porte ilegal de arma terminou com a condenação
convertida em horas de serviço comunitário.
Dois anos depois, em 2014, ele se meteu em uma confusão com policiais
durante um protesto organizado por moradores do Lins após uma garota de
sete anos ser baleada dentro de casa. Acabou preso por um mês e meio,
mas teve seu nome excluído do processo. Desde então, outros três
processos apareceram no nome dele com base apenas em reconhecimentos
fotográficos.
Pescaria de suspeitos
Cada delegacia registra dezenas de ocorrências ao longo do dia, e o
álbum de suspeitos é um dos elementos que ajuda a Polícia Civil a lidar
com essa demanda. Mas a psicóloga Juliana Ferreira da Silva,
especialista em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança
Pública, ressalta que ele não deve ser usado como forma única de
reconhecimento. “Acaba sendo uma pescaria. Se entrego um álbum com fotos
de sujeitos aleatórios, a chance de você pescar alguém que não tem nada
a ver com o assunto é muito alta. A gente vê álbuns com 100 pessoas”.
Até porque as testemunhas falham. E muito. Uma pesquisa do Innocence Project,
associação internacional sem fins lucrativos especializada em analisar
condenações injustas, dissecou mais de 300 casos de condenações injustas
que o projeto conseguiu reverter nos Estados Unidos. Em 71% dos casos,
os sujeitos haviam sido reconhecidos por vítimas e testemunhas. “A
memória não é um registro escrito num caderno, não é como uma foto. A
memória é viva, se modifica no corpo da gente”, explicou Ferreira. “Uma
investigação não pode só se basear no reconhecimento, é preciso outras
provas. A pessoa pode se lembrar só do cabelo, isso é muito comum. As
testemunhas não olham muito para a face, quanto mais amedrontadas, menos
olham. Elas se lembram mais da arma”.
Um dos processos de Deivid Almeida serve como exemplo. Três
entregadores de uma rede de eletrodomésticos dirigiam pelas ruas do Rio
quando foram abordados por um sujeito armado numa moto. Tiveram de
segui-lo até uma favela, onde um grupo armado retirou toda a mercadoria
do caminhão. Ao chegarem na delegacia, narraram o fato e receberam um
álbum de fotos. Cada um apontou para seis suspeitos diferentes – só um
nome coincidiu. Almeida só foi reconhecido uma vez como o homem que
descarregou as coisas do caminhão. Outro entregador apontou um sujeito
diferente. Mesmo assim, a acusação segue, sustentada exclusivamente nos
testemunhos e reconhecimentos, e Almeida é réu no processo.
“Isso abre uma avenida para o racismo”, argumenta Guilherme Pimentel,
ouvidor da Defensoria Pública. “Acabam empurrando processos para quem
se enquadra no perfil do inimigo, que é construído historicamente em
torno dos descendentes de pessoas escravizadas: o jovem negro e
favelado”.
No caso de Alan Dias, as testemunhas afirmaram na audiência
presencial que aquela não era a mesma pessoa apontada por elas na
delegacia. Só uma delas, mesmo sem ter absoluta certeza, manteve o
reconhecimento.
A polícia usou outros métodos para tentar provar o envolvimento de
Dias e dos outros suspeitos. Fez exames para identificar as digitais nos
veículos roubados, buscou imagens de câmeras de segurança e comparou os
traços dos acusados com os homens que aparecem nas gravações. Nada
disso colocava Dias nas cenas do crime – só a palavra de três pessoas na
delegacia.
Quando a apelação chegou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a
desembargadora Rosita Maria de Oliveira Netto, relatora do caso,
constatou as incoerências e absolveu o réu. Seus colegas acompanharam o
voto. Só que, até ali, Dias já havia passado mais de três anos preso
injustamente, viu seu casamento desmoronar e precisou vender uma casa
no Lins para pagar os honorários da advogada que o defendeu.
Fotos sugestionáveis
O Código de Processo Penal prevê, no artigo 227, o “reconhecimento de
objeto” – ou seja, de fotografias. A vítima ou testemunha precisa
primeiro descrever o suspeito antes de ser confrontada com o álbum. Nos
oito processos que consultei, em quatro deles as vítimas ou testemunhas
não haviam descrito o criminoso antes de abrir o álbum. Em outro, a
descrição se resumia a “homem negro e alto”.
Assim, advogados e defensores questionam os procedimentos realizados
nas delegacias. “A sugestionabilidade é uma coisa que você tem que
controlar muito com testemunhas oculares. Imagina se eu pergunto para
você assim: ‘A pessoa que levou seu celular tinha cabelo raspado, né?’
Isso aciona outra memória, contamina o relato. É preciso que se usem de
técnicas apropriadas durante a entrevista investigativa”, explicou
Ferreira.
Não há nada mais sugestivo do que se deparar com a foto de um homem
preso – aquela de filme, com uma régua ao fundo, na parede. Dos três
processos que acessei de Anderson Lima, aparecem fotos como essa em
dois, indicando que ele já tinha ficha na delegacia. “A polícia não deve
nem dar nenhuma informação, não deve nem sugerir que o suspeito que
estará na formação [ou nas fotos] foi preso, não pode dizer nada sobre
ele”, afirmou Ferreira.
Ao descumprir essas regras, a Polícia Civil acaba com as chances de
conduzir uma investigação séria e prejudica diretamente o direito de
defesa de quem se vê implicado em crimes por conta dos erros de
procedimento da corporação. “Visitei um homem preso em Bangu com 78
processos, todos por reconhecimento de foto. Eu não estou discutindo se
ele é culpado ou inocente. Ele já tem diversas absolvições, mas segue
preso”, contou Oliveira.
Alan Dias recebeu sua segunda absolvição em 21 de março deste ano.
Era um caso bem simples para a justiça: bastava olhar para a cara de
Alan e a foto estampada no álbum. Não são a mesma pessoa.
Ele e seus dois vizinhos do Lins se dizem cansados de serem acusados
de atos que não cometeram só por terem tido suas fotos incluídas nos
álbuns da delegacia. Cada processo assusta: Deivid Almeida, que trabalha
com mototáxi, passou um tempo sem sair de casa entre janeiro e
fevereiro, com medo de ser alvo de um mandado de prisão e acabar, de
novo, na cadeia.
Se tudo correr conforme a regra, nem ele, nem ninguém será preso
preventivamente apenas por ter sido apontado por testemunhas no álbum de
suspeitos. Em 2020, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que as
diretrizes do artigo 226 do Código de Processo Penal, referenciadas no
artigo 227, deixem de ser recomendações para serem obrigatórias. “Foi
uma grande virada na jurisprudência”, relatou Oliveira.
Além da decisão do STJ, no Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça publicou um aviso em janeiro deste ano recomendando a reavaliação de prisões preventivas
decretadas com base apenas no reconhecimento por foto. “Ainda é muito
prematuro dizer se isso tem sido cumprido ou não. Mas temos a
expectativa de um caminho melhor daqui para frente”, ele me disse.
Em nota, a Polícia Civil informou que “orientou, desde outubro de
2020, que os delegados não usem apenas o reconhecimento fotográfico como
única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos”.
Reforçou, ainda, que o reconhecimento por foto é importante no início da
investigação, mas “deve ser ratificado por outras provas técnicas”.
Falta colocar isso em prática.