Impressões sobre a 2ª
Conferência Nacional LGBT
Por Adé Diversidade
Por Gésner Braga
Brasília foi palco recente da 2ª
Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT. O evento aconteceu no período
de 15 a 18 de dezembro de 2011, na sede da Conferência Nacional dos
Trabalhadores do Comércio e teve por objetivo central avaliar e propor
diretrizes para a implementação de políticas públicas voltadas ao combate à
discriminação e à promoção dos direitos humanos e cidadania da população LGBT
no Brasil.
E lá estava eu, não como delegado,
mas como observador. Pisar em solo brasiliense para este fim foi decisão
difícil e demorada, exatamente porque minha experiência na Conferência Estadual
não foi muito boa. Pensei em boicotar a Conferência Nacional com minha
ausência. Mas que diferença isso faria? Muita pretensão da minha parte, um
aprendiz de militante que está há pouco mais de um ano no ativismo.
Em conversa com minha amiga Guida
França, também ativista LGBT, fui convencido da situação confortável que seria
ir como mero observador. Uma vez que não me envolveria com votações e
inevitáveis climas passionais em alguns casos, poderia me posicionar de forma
ainda mais distanciada e crítica. Também para garantir a transparência dos meus
atos e evitar insinuações de oportunismo, fui a Brasília a minhas expensas e só
fui flexível com relação à alimentação por uma questão de ordem prática e
economia de tempo. O custo não foi pouco.
Confesso que cheguei à conferência
com as piores expectativas. Esperava a descarada farsa governamental, a
selvagem disputa política e a brutal ruptura das célebres quatro letrinhas do
nosso movimento. Esperava ver o circo pegar fogo. E então? Aconteceu? Ora, é
claro que houve propaganda institucional, divergências e disputa. Houve sim,
mas não em extremos.
Eu sempre soube que a conferência era
um produto do governo e, como tal, era também espaço de publicidade das versões
oficiais de implementações de políticas públicas LGBT. Entretanto, eu também vi
que a conferência foi espaço para o contraditório. Ótimos exemplos, a meu ver,
sentaram à mesa de abertura e das plenárias como palestrantes.
Um dele foi o deputado federal Jean
Wyllys (PSOL-RJ), a quem não canso de render homenagens. Em fala breve na
abertura, ele não teve nenhuma cerimônia em fazer uma crítica dura à política
partidária ao dizer que, ao pensarmos políticas públicas para a população LGBT,
não podemos pensar nos partidos e sim na sociedade. Também alfinetou a
comunidade LGBT que, composta de 19 milhões de brasileiros, conseguiu produzir
uma cultura e identidade coletiva, mas não fez um salto significativo para uma
política afirmativa. Convenhamos, alfinetadas fazem muito bem de vez em quando.
Outro discurso empolgante, lúcido e
justo foi o da deputada Erica Kokay (PT-DF), que celebra nossas conquistas e
nos convida a continuar avançando sempre. Sua pesada munição foi direcionada
sobretudo para o poder fascista que cresce no Legislativo, especialmente
através da bem estruturada bancada evangélica. “Quando se avança na homofobia
retrocede-e na constituição democrática deste país”, afirmou. Também fez
críticas ácidas à campanha contra o projeto Escola Sem Homofobia, que
qualificou (a campanha, por favor!) como uma construção mentirosa e leviana,
bem como ao governo, que retirou o projeto sem dizer o que ele representava, e
especificamente à presidenta Dilma, que procedeu ao veto alegando uma questão
de costume, quando na verdade se trata de uma questão de direito. Neste
sentido, alertou para o fato de se estar humanizando uma lógica social
conservadora por meio do costume.
Porém, foi a fala de Luiz Melo,
professor e pesquisador da Universidade Federal de Goiás, que me arrebatou com
mais força, com um discurso contundente, firme, claro, convincente e num tom
surpreendentemente suave. De cara, lamentou a ausência da presidenta Dilma, que
sequer encaminhou uma carta de apoio à Conferência. Também lamentou outras
ausências, como do ministro da Saúde e do Ministro da Educação, a quem caberia
explicar o porque do veto ao kit Escola Sem Homofobia, ou ainda a de Luiz Mott
e toda sua contribuição intelectual ao Movimento Homossexual Brasileiro.
Externou sua preocupação de se findar a Conferência sem um compromisso do
governo para combater o tsunami de intolerância que toma o país. É dele a
seguinte análise de precisão cirúrgica a partir de pesquisa acadêmica que
realizou sobre políticas públicas para LGBTs no Brasil: “nunca se teve tanto,
mas o que se tem é praticamente nada”.
E agora mais essa notícia da Agência
Brasil, replicada em diversos sites, sobre a restauração do texto original do
PL 122 que criminaliza a homofobia como uma das principais reivindicações da
Conferência (http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/12/18/conferencia-lgbt-pede-restauracao-de-texto-do-projeto-que-criminaliza-homofobia).
Segundo a notícia, o repúdio ao substitutivo do projeto de lei é esclarecido e
defendido por Gustavo Bernardes, coordenador-geral dos Direitos LGBT da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, ou seja, governo. Para ele, “a nova
versão não deixa claro que os atos de homofobia são tipificados no Código
Penal. Os movimentos entendem que o substitutivo é genérico e cria dificuldade
para os juízes interpretarem os casos de homofobia como crimes”.
Se, com tudo isso, a Conferência
Nacional LGBT não foi espaço para o contraditório, alguém me esclareça o que é
sê-lo.
Mas os exemplos não param por aí. Os
melhores vieram mesmo da platéia, dos discursos acalorados das e dos
conferencistas, sem cerceamento da palavra. É claro que havia limitação de
tempo de inscrição e de fala, caso contrário, a conferência duraria muito mais
que quatro dias. Mas não havia restrição de número de inscritas e inscritos
para falar. Fiquei por vezes comovido, às vezes empolgado, às vezes pasmo, às
vezes entediado, às vezes indignado com o que vi e ouvi. Enfim, uma rica salada
de sensações que só fez atiçar mais ainda o meu senso crítico.
Falando em indignação e confronto de
idéias, o depoimento que mais me revoltou foi de alguém que alegou que a
homofobia não é fruto do machismo. Fiquei indócil, mas fui contemplado por
réplicas imediatas. Esqueceram de dizer a essa pessoa que o machista entende a
homossexualidade como uma inaceitável ofensa à imaculada masculinidade e que o
machismo é um dos pilares da sociedade heteronormativa que produz e perpetua o
preconceito e incita a violência contra todos nós, sem exceção. Digo que isso é
cegueira cultural e não se verifica só na Conferência LGBT. Eide Paiva,
ativista da LBL, relatou casos de lesbofobia na Conferência das Mulheres, por
exemplo, igualmente combatidos.
Ainda no viés da análise da
Conferência Nacional como espaço plural de idéias e debates, falo um pouco da
minha experiência no GT de Poder Legislativo e Direitos da População LGBT, do
qual participei. Ali eu me senti pequeno diante da grandiosidade de um garoto
chamado George. Não me lembro o sobrenome, nem de onde ele é, mas fiquei
boquiaberto com sua enorme bagagem e poder de articulação. Vibrei com a
indicação de uma transexual do Rio Grande do Sul para coordenar a mesa desse
mesmo GT, por, digamos, voto popular. Fiquei orgulhoso com a Bahia sendo ali
bem representada por Edilene Paim e soube que Eide Paiva não fez por menos em
outro GT. Aliás, a expressiva delegação baiana se fez presente em todos os
grupos de trabalho, mesmo com a falta de alguns delegados eleitos.
Nas plenárias, senti-me inspirado
pela firmeza das lésbicas, negras e negros em sua constante e incansável busca
de empoderamento. Amei perceber que travestis e transexuais ganham espaço, voz
e representatividade a cada dia por sua luta própria e heróica, independente
das ações do poder público. Aprendi um novo termo, o capacitismo, para definir
a discriminação contra pessoas deficientes, conceito apresentado por uma pesquisadora
lésbica com deficiência e definitivamente incorporado pelo Conferência e pela
militância. Achei um barato me “infiltrar” acidentalmente na Rede Afro. Lá
estava eu, branquelo, entre negonas e negões, sem que isso tivesse causado
qualquer constrangimento aparente. Ah, e ainda experimentei a estranha (ou
queer?) sensação de encantamento por um transexual masculino muito fofo cujo
nome não me lembro agora, mas sei que era o mais jovem dos quatro ali presentes
e que namorava uma transexual feminina. Nossa! Quanto nó na minha cabeça. Só
senti falta de um posicionamento mais destacado de bissexuais. É certo que eles
eram sempre lembrados nas construções de propostas e diretrizes, mas não
surgiram como um segmento político, independente e afirmativo.
Por tudo isso, eu não posso negar que
a Conferência Nacional LGBT foi uma experiência rica na minha vida. Meu
envolvimento era tamanho que me sobrou pouquíssimo tempo fora dos horários do
evento. Eu não conseguia desgrudar da cadeira, tanto na abertura, quanto nos
grupos de trabalho e nas plenárias. Chegava no início dos trabalhos e só saia
no final, quando então era sempre muito tarde. Pausa? Só para me alimentar. Eu
tinha sede de saber e a pluralidade de idéias garantiu a riqueza do meu
aprendizado.
Mas será que o meu senso crítico está
comprometido pela paixão do momento? Acho que não e me pergunto: o que nos
espera daqui para frente? Do que adiantou tanto trabalho desde as conferências
territoriais? As diretrizes propostas em Brasília serão realmente postas em
prática? Todas? A maioria? Poucas? Nenhuma? Não sei. Isso depende, sobretudo,
da vontade política do poder público. Mas uma coisa eu garanto: de braços
cruzados eu não vou ficar. Porque realizar também depende de mim. Depende de
nós.
Para aqueles de longa estrada, esse
meu depoimento pode parecer pueril, apesar dos meus 47 anos, mas eu preciso
lembrar que estou apenas há um ano na militância e nunca me debrucei sobre
esses assuntos como hoje faço. Talvez por isso meu ânimo possa parecer risível,
mas torço por não perdê-lo nunca.
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