domingo, 29 de dezembro de 2019

‘Nasci com alma de mulher em corpo de homem’: como Patrícia se reconheceu e enfrenta a transfobia



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Eu sou diferente e gosto de ser assim como sou. Não sou como um padrão, parte do grupinho que segue a tendência.’
 
Ilustração: Christopher Dombres/Domínio público
Este texto contém relatos de assédio, violência doméstica e estupro.
PATRÍCIA FERNANDES, 19 ANOS, foi considerada um ‘menino’ ao nascer, mas começou a se perceber ‘feminina demais’ enquanto crescia. Contra a expectativa de sua família, a jovem se reconheceria uma mulher trans anos depois.
Ambos moramos em Sapucaia do Sul, cidade a 30 km de Porto Alegre, e nos conhecemos em meados de 2018. Amigos, falávamos sobre nossas vidas, angústias e desilusões. Na época, Patrícia estudava e procurava emprego porque queria sair de casa. A seu pedido, tentei ajudá-la a achar vagas de trabalho abertas e refiz seu currículo, sem sucesso. Pouco a pouco, a cada porta fechada ou olhar atravessado na rua, testemunhei parte da transfobia que Patrícia sofre diariamente.
Desde pequena, por não se enquadrar nas expectativas dos outros sobre seu gênero, conviveu com agressões. Esse ódio aumentou quando, adolescente, reconheceu-se mulher trans. Foi sendo abandonada pela família e continuamente rejeitada pelo mercado de trabalho. Viveu assim até chegar o final de 2018 e Patrícia me contar uma novidade: expulsa de casa, reprovada na escola por um professor transfóbico e com dificuldades de encontrar emprego, havia decidido recorrer à prostituição.
De repente, minha amiga se tornava parte dos esmagadores 90% da população trans brasileira que realizou trabalho sexual em algum momento da vida. Desde então, a jovem já morou em diferentes cidades, casas, apartamentos e até em boates. Hoje, Patrícia busca mais estabilidade e uma nova profissão. Diz estar cansada e desgastada, mas não quer abandonar a prostituição se isso significar a perda da independência que conquistou.
Conversamos em junho deste ano, por cerca de uma hora no apartamento que ela dividia com uma amiga, em Sapucaia do Sul. Nesse dia, Patrícia narrou sua vida inteira: dos momentos mais difíceis aos mais felizes. ‘Contar tudo foi muito libertador. Tirei um fardo que só eu carregava’, me disse.
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Foto: Arquivo pessoal
DESCOBRI QUE EU ERA DIFERENTE ainda pequena. Aos dois anos, já tinha uma bonequinha azul que era a minha filha. Brinquei com ela até o cachorro estraçalhar. Também nunca gostei de vestir a roupa que a mãe comprava para mim. Queria era botar vestido. Tive fases: achei que era gay, bissexual, andrógina, travesti… Aos 15 anos, troquei todo o meu guarda-roupa – do nada. Antes eu tinha roupas de menino, mas sempre dava um toque feminino nelas, uma cortadinha na camisa ou um lápis de olho.
Quando eu troquei minha maneira de vestir, não pedi autorização a ninguém. Disse ‘vou trocar minhas roupas e não tô nem aí!’. Mas ainda havia uma confusão. Eu me sentia indefinida. Só depois de assistir a uma reportagem na TV que percebi quem eu era, que nasci com uma alma de mulher em um corpo de homem – e com o tempo fui me adequando a ele. Eu tinha uns 16 anos e falavam da novela ‘A força do querer’, sobre um dos personagens que se descobria um homem trans.
Até minha mãe dizia que, ‘se eu queria ser mulherzinha, tinha que agir como uma’.
Eu via ele se batendo porque não queria o corpo que tinha e eu pensava ‘nossa, eu faço isso também’. Na reportagem, tinham outras pessoas sendo entrevistadas e eu me identificava com todas, ‘eu sou assim, agora eu sei quem eu sou’. Aí eu me encaixei e vi que, na verdade, eu era a Patrícia, uma menina trans.
Mas, em casa, nunca fui aceita. Desde quando meu padrasto viu que eu era diferente, passou a me tratar mal e me batia bastante. Até minha mãe dizia que “se eu queria ser mulherzinha, tinha que agir como uma”. Aí eu estava sempre na cozinha, limpando, cozinhando. Se não fazia, apanhava. Desde pequena tive a obrigação de cuidar dos meus irmãos e limpar toda a casa. Era tudo minha responsabilidade e, quando meus irmãos faziam algo errado, quem apanhava era eu, a culpa era sempre minha.
Quando meus pais iam sair, meu padrasto me mandava tomar banho, e, enquanto eu estava no chuveiro, eles saíam para comer. Eu achava que eles estavam lá me esperando, mas já tinham saído. Pensava ‘ué, eles me deixaram?’ Quando eles chegavam em casa, meu padrasto me batia porque eu tinha sujado a panela para preparar uma comida. Eles nem sequer traziam um lanchinho.
Meus três irmãos tiveram tudo: roupa boa desde pequenos e brinquedos, mas eu vivia de roupa de doações dos outros. Em um Natal, meu irmão ganhou um tênis de marca caro, minha irmã uma boneca e meu irmãozinho o brinquedo que ele queria. Para mim, deram só um colarzinho do Inter de R$ 1. E eu chorei e agradeci porque achei maravilhoso que meu padrasto se lembrou de mim. Mas eu queria era ganhar um DVD da Lady Gaga!
Já na rua, eu era mais livre na rua do que dentro de casa, onde era aquele inferno. Às vezes, nem ir para a escola eu podia, porque precisava cuidar dos meus irmãos. Desde os meus 12 anos, sempre trabalhei. Vendi meia, trufa, trabalhei de doméstica, em lanchonete, cuidei de idosa, de criança… Sabia que se eu não fizesse por mim, ninguém ia fazer. Na época, eu trabalhava para poder comprar um cachorro-quente que fosse, mas mesmo assim tinha que dar metade do dinheiro aos meus pais, para ajudar em casa, enquanto meus irmãos ganhavam mesada.
Fotos: Arquivo pessoal

‘Eu só queria mais amor dentro de casa’

Além dos meus pais, também tive encrenca com meu irmão, que é um ano mais velho que eu. Ele começou a se revoltar comigo por eu ser trans. Já apontou uma arma para minha cabeça e me ameaçou com faca. Uma vez bateu em mim tão forte a ponto de eu quase ter morrido. Era um inferno. Só queria que minha mãe me desse mais amor, só queria mais amor dentro de casa. Chegou um dia em que precisei fugir.
Foi uma discussão por causa de um carregador de celular. Meu irmão pegou um pedação de piso e veio jogar em mim. Peguei uma barra de ferro para me defender, mas minha mãe começou a chorar e acabei acertando ela por engano. Acabou que meu irmão pegou uma faca escondido e depois tentou acertar minha barriga. “Eu vou matar esse viado desgraçado”, gritava. Ele tinha raiva porque seus amigos tinham interesse em mim, mas ele mesmo não me aceitava.
Foram dias em que passei fome. Tive vontade de comer o jornal que estava no chão.
Precisei fugir para não ser morta. Fui morar com uma amiga. Na época, ela estava de mudança para Santa Catarina, então desocupou sua casa, que era alugada, para eu morar. Também me indicou no emprego em que ela trabalhava, em um grande salão de cabeleireiros no centro de Sapucaia do Sul. Só que essa minha amiga ganhava R$ 1200 por mês nesse trabalho. Mas quando comecei, meu chefe só me pagava R$ 450 sendo que o aluguel dessa casa era R$ 395!
Isso foi em 2017. Eu trabalhava às vezes do meio-dia às 21h. E a casa era vazia, sem nada, então não tinha o que comer. O que eu comia era quando ia trabalhar. Só que, como eu recebia por mês, no começo, foram dias direto que passei fome. Tive vontade de comer o jornal que estava no chão. Deitava a cabeça no travesseiro e pensava “dorme, dorme, dorme”, mas o sono não chegava nunca porque era muita fome. E eu não podia ir na minha mãe por causa do meu irmão. “Ah, a Patrícia sabe se virar sozinha”, ela disse aos meus tios.
E meu chefe, no salão de cabeleireiros, pagava pouco porque dizia que tinha “desconto”. Fui conversar e ele me respondeu que “o salário que podia me dar era esse e se eu não quisesse ele contratava outra pessoa”. E tinha ameaças “é isso que posso te dar, se você não quer, vai embora”. Mas como é que eu iria embora se era só aquilo que eu tinha para pagar meu aluguel? Aí eu aceitei. Cheguei a contatar um advogado, que só me respondeu que isso ia ser causa perdida para mim.
Fora isso, também fazia faxina nos finais de semana. Eu dava um jeito para me manter. Economizava água, luz, energia e fazia amizades. Recebi de presente uma mesa e uma cadeira, ganhei um fogão em uma promoção no Facebook, comprei uma geladeira e fui montando meu lar, até um dia que meu chefe me deu R$ 400 de salário. Estava sem comida em casa, então pedi para ele, por favor, me ajudar. Aumentou então meu salário para R$ 600, mas pouco tempo depois me demitiu.
Só que aí, nesse meio tempo, uma amiga minha que estava procurando um lugar para morar com o filho pequeno veio morar comigo. Ela foi minha parceira, a gente se ajudou muito e essa foi uma das melhores fases da minha vida. Trabalhávamos, conversávamos muito e, no final de semana, íamos para festas. Fiz 18 anos e já estava morando sozinha, com meu canto e adquirindo minhas coisas com o suor do meu trabalho – há tempos eu tinha essa meta na minha cabeça, só não sabia que ia ser dessa forma.

‘Eu ficava sem ar. Desmaiava e voltava, desmaiava e voltava’

Nessa minha fase em que eu estava maravilhosa, morando sozinha, com 18 anos, tive minha primeira vez. Eu era virgem ainda e pensei “vou aproveitar minha vida!”. Então marquei um encontro com um homem no Tinder. Ele havia dito que a intenção dele era sexo, e respondi que a minha também. Então ele foi me buscar no serviço e fomos para um motel.
Chegando lá, ele foi tirando minha roupa, daí pedi “calma”. Só que eu não falei para ele que era minha primeira vez. Ele arrancou minha roupa e me jogou na cama. A única coisa que eu lembrei de dizer foi “só bota camisinha”. Ele viu que eu não estava gostando, pedi para ele parar e ele não parava. Comecei a bater na parede e eu ficava sem ar. Desmaiava e voltava, desmaiava e voltava. Caí de joelhos, fiquei sem força. Ele parou, sentou, começou a fumar e ficou olhando a situação. Depois, ele olhou para mim e disse: “sabia que eu sou casado?”
Minha demissão do salão de cabeleireiros aconteceu pouco depois disso. Como eu não arranjava faxina nem nada, fui convidada pela minha amiga que havia ido a Santa Catarina para viver com ela, em Sombrio. Fiquei dois meses tentando achar emprego e nada. Foi quando minha mãe começou a me ligar, mandar mensagens, chorando e dizendo que sentia minha falta. Decidi voltar. Não queria ficar lá com minha amiga me sustentando, então voltei para a casa da minha mãe porque estava longe e de boa com a família. Regredi tudo de novo.
Fotos: Arquivo pessoal

‘Eu vou catar papel, mas não vou entrar para prostituição’

Nesse período, tive depressão e voltei a estudar, mas só estudei um ano porque o professor-regente da minha turma se irritou comigo e zerou todas as minhas notas. Eu já era Patrícia na escola, mas ainda não tinha meu nome social nos documentos. Era o nome masculino, só que todos os professores sabiam, então relevavam. Era meu direito colocar meu nome nas chamadas, do jeito que queria.
Esse professor zerou minhas notas porque meu ‘nome’ não constava nos papéis, sendo que ele sabia que era eu. Por causa disso, repeti de ano no EJA. Foi mais um ano perdido em que eu estava me esforçando pra caramba. Aí eu não queria mais viver. Por que ficar nesse mundo se dá tudo errado para mim? É sempre essa coisa, essa dor de cabeça, esse inferno. As pessoas de fora da família, todo mundo gostava de mim, às vezes queriam me ajudar, mas não tinha o que fazer. Cansei da vida.
Nesse dia, saí sozinha de Sapucaia do Sul à noite e andei até a cidade vizinha, São Leopoldo. Fui até o Rio dos Sinos, olhei para a água e cogitei pular. Queria cair lá dentro, me afogar e ninguém ia saber de nada. Mas, no fim, decidi voltar para casa. Ao chegar, meu padrasto já jogou em mim um prato de comida e gritou “só quer comer! Já tá com 18 anos na cara e não quer nada da vida”, disse. Mas olha tudo o que fiz, sabe? Entrei no quarto, deitei na cama e pensei “queria tanto dormir agora e não acordar mais”. Apagar! E apaguei. No outro dia, acordei melhor.
Nessa hora, apareceu uma outra amiga minha, a Mariele. A gente tinha se afastado durante um tempo porque ela havia entrado para a prostituição, e eu não queria entrar. Eu sempre dizia “posso fazer qualquer coisa, vou catar papelão na rua, mas não vou entrar pra prostituição”. Mas a Mariele apareceu de novo, e ela estava super bem.
Essa ideia de me prostituir veio para eu me reerguer de novo. Fiquei desconfiada, mas ela me garantiu que não era assim como eu pensava. Naquele mesmo dia, foi um inferno dentro de casa, então pensei “ah, foda-se, mais na merda que eu estou não vou ficar!”, e fui para a casa dela.
Aí fui indo. Fiz umas páginas na internet, meu primeiro programa. E agora faz um ano que estou nisso. No começo foi ruim, eu me sentia suja. Depois que saía dos programas eu tomava banho e me esfregava porque é com pessoas que você não quer, sabe? Aí foi que eu acabei me adequando.
Tem altos e baixos, com dias bons e ruins. Hoje, melhorei, ganhei dinheiro. Evoluí e tenho uma visão de mundo completamente diferente da que tinha antes. Eu não sou mais boba. Já fui estuprada, já apanhei. Mas também conheci pessoas legais, sem maldade. Pessoas que só queriam ajuda, atenção e carinho. Muitas vezes, eu não transei. Apenas conversava com a pessoa, dava afeto. Conheci pessoas incríveis que foram fazendo eu voltar a ser quem eu era antes disso tudo. Já ‘casei’ com cliente, fui morar com ele. Também já morei em boate e em diferentes cidades. Eu sempre quis trabalhar, correr atrás, ralar muito. Só quero chegar em um ponto em que eu consiga me estabilizar, tenha meu canto, minhas coisas, minhas contas para pagar. Hoje, estou à procura de outro serviço porque quero parar e estou cansada.

‘Você anda na rua e os homens todos te olham’

Todo dia eu temo pela minha vida. Eu estou em uma boate, pode chegar um cara, me dar uma garrafada na cabeça, e eu cair dura no chão, ou eu chegar em um quarto de motel, e o cara me matar. Isso que, na boca dos homens, eu sou “passável”. Não pareço um “travecão”, como eles falam. Mas ainda tem criança que me vê e olha como se perguntasse: “é menino ou menina?”
Na prostituição, a gente acaba criando um faro. Você anda na rua ,e os homens todos te olham. Até nova eu tinha raiva disso, mas hoje não tenho mais. Antes, eu ficava muito chateada porque as pessoas só queriam me usar como objeto sexual. Só queriam se relacionar comigo para ter uma “experiência”, ter uma primeira vez e saber como é o sexo com uma mulher trans. Com o tempo, usei isso a meu favor, que hoje é o meu trabalho. Me desejou, me pagou, para mim está ótimo.
Na cabeça dos homens, é como se a trans fosse uma “mulher com pau”. Tem a aparência feminina (eles pensam “não vou deixar de ser hétero porque estou olhando para uma mulher”), só que com órgãos masculinos. É uma coisa que é “proibida”, do desejo do homem de fazer uma coisa diferente, algo “perigoso”. E eu acho que se não fosse uma mulher trans, mas cis, não seria tão interessante para homens como sou hoje. Eu sou diferente e gosto de ser assim como sou. Não sou como um padrão, parte do grupinho que segue a tendência.
E, hoje, meu plano para o futuro é arranjar outro trabalho. Hoje quero estudar e virar ‘doutora Patrícia’, ter minha casa, ter meu carro. Eu só quero ser feliz, mas não vou correr o risco de abandonar o trabalho sexual por um salário mínimo que não me garanta uma vida melhor da que tenho hoje.
E querendo ou não, a melhor parte da minha vida foi dos meus 17 para 18 anos, quando morei sozinha, tive minha vida e privacidade. Não tenho ódio, quero o bem para todo mundo. Mas há pessoas com ódio, que não nos aceitam, que acham que somos trans porque queremos, que a gente não nasceu assim e pôde escolher. Não é. A gente ia escolher passar por todo esse tipo de coisa na vida?
ANTES QUE VOCÊ SAIA… Quando Jair Bolsonaro foi eleito, sabíamos que seria preciso ampliar nossa cobertura, fazer reportagens ainda mais contundentes e financiar investigações mais profundas. Essa foi a missão que abraçamos com o objetivo de enfrentar esse período marcado por constantes ameaças à liberdade de imprensa e à democracia. Para isso, fizemos um chamado aos nossos leitores e a resposta foi imediata. Se você acompanha a cobertura do TIB, sabe o que conseguimos publicar graças à incrível generosidade de mais de 11 mil apoiadores. Sem a ajuda deles não teríamos investigado o governo ou exposto a corrupção do judiciário. Quantas práticas ilegais, injustas e violentas permaneceriam ocultas sem o trabalho dos nossos jornalistas? Este é um agradecimento à comunidade do Intercept Brasil e um convite para que você se junte a ela hoje. Seu apoio é muito importante neste momento crítico. Nós precisamos fazer ainda mais e prometemos não te decepcionar.Faça parte do TIB 

Bancos lucram enquanto famílias sofrem pagando boletos

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ENQUANTO BANCOS TÊM LUCRO RECORDE, pessoas adoecem tentando pagar boletos. Em 2019, o lucro acumulado do Bradesco, Itaú Unibanco, Santander e Banco do Brasil foi de R$ 59,7 bilhões, o maior desde 2006. A euforia do capital financeiro contrasta com o sofrimento financeiro de grande parte da população. Segundo a CNC, 65,1% das famílias brasileiras estão endividadas — índice recorde desde 2013.
Desde os escritos do pensador francês Marcel Mauss (1872- 1950), sabemos que a dívida é uma dimensão estruturante das relações humanas. Quem doa fica na posição de poder e prestígio. Quem deve fica em desonra e posição de inferioridade. A vida coletiva em todas as sociedades é marcada por uma constante dança para que essas relações de crédito sejam balanceadas em uma economia humana de reciprocidade. Mas isso, segundo o best-seller “Dívida”, de David Graeber, é impossível alcançar em economias de mercado, que, segundo o autor, são estruturadas sobre a violência estatal e produtoras de endividamento e subordinação.
A dívida também é um tema marcante da Sinologia (estudos da China), que trabalha com uma noção que considero bastante apropriada para nomear a violência que o capital financeiro produz no Brasil: mianzi, literalmente traduzido para o português como “face”. Quando um sujeito está endividado, ele “perde a face”. Isso pode levar a um longo processo de anulação do  “eu” — ou, como disse o próprio Mauss, “perder a alma” referindo-se aos povos kwakiutl do noroeste americano.
Lembro de minha interlocutora chinesa que, após se endividar nos cassinos de Macau, perdeu tudo o que tinha, inclusive mianzi, e me explicou que sua situação era a de suicídio sem morrer: “eu vivo, mas não existo”, disse-me Feifei, que, aos 33 anos, decidiu se anular socialmente. Feifei havia perdido a alma.
Estou trazendo a noção de (perda de) mianzi porque é a forma radical para dar sentido a dezenas de relatos que recebi nos últimos dias como resposta a um despretensioso tuíte no qual comentava que gostaria de ouvir histórias de endividamento. Recebi longuíssimos textos, todos narrando uma saga financeira. Em cada detalhe da história, José, Maria e João elaboram sua própria trajetória. José, Maria e João são milhares, e todos eles possuem um roteiro de vida muito parecido: na medida em que a bola de neve das dívidas cresce, a capacidade de sonhar diminui.

O endividado tem seu nome no Serasa e passa a ter sua vida definida por um escore.
Graeber definiu dívida como “a perversão de uma promessa”. O itinerário do endividamento segue uma estrutura comum. Para a estudante, a saga começa com uma bolsa de iniciação científica, um cartão de crédito, um limite em conta bancária universitária e uma família em dificuldade financeira. Já os sujeitos que buscavam abrir um negócio relatam que “o sonho virou pesadelo”. Em pouco tempo, usa-se todos os limites e os juros abusivos fazem com que a dívida cresça de forma descontrolada.
O ciclo do superendividamento e da inadimplência consiste em fazer um empréstimo e/ou usar todo o limite de um cartão. Aí se tenta um segundo ou terceiro crédito para pagar o impagável. Em um piscar de olhos, todos os limites estão estourados. Quando entra um dinheiro na conta, o banco toma para si.
O endividado, então, tem seu nome no Serasa e passa a ter sua vida definida por um escore, um número vermelho ao qual todas as instituições têm acesso e que aniquila a privacidade. Você é um número vermelho, então você precisa de crédito para sair dessa situação, mas as portas estão fechadas justamente porque você é um número vermelho. Não importa a sua dignidade, as suas razões, seus sentimentos, a nobreza de seus projetos: você é reduzido a um escore. Contava-me uma filha sobre a depressão da mãe, que perdeu um salão de beleza em uma enchente:
E a minha mãe está sem paz por isso. Ela odeia dívidas. Fica nervosa, agoniada, em saber que está devendo para alguém. Ela nunca saiu sem pagar de nenhum lugar, nunca deixou de pagar um produtinho da Avon, nunca deu um cheque sem fundo, nunca deu calote em ninguém, nunca atrasou uma fatura, nunca fez fiado em nenhum lugar.
A perturbação leva à desumanização de se viver em um ciclo tortuoso e infindável de recusas. Os endividados não conseguem dormir pensando como pagar as contas. “É a insônia do boleto”, brincou uma interlocutora. “Meu banho matinal consistia em ficar pensando em como solucionar”, comentou comigo outra pessoa.
Aos poucos, todos os gastos vão sendo cortados: a escola particular dos filhos é trocada pela pública. Vende-se o carro (mas o IPVA de muitos não está pago, o que prejudica a própria venda). Muda-se para apartamento mais barato até chegar a “morar de favor”: “Eu tento comer pouco porque moro de favor e tenho vergonha de ficar pedindo, emagreci 10kg em poucas semanas assim”, relatou-me uma estudante.

Nessa direção de uma vida ‘sem alma’, a grande maioria dos relatos que recebi mencionava a vontade de morrer.
Como nossa existência não é apenas individual, famílias inteiras adoecem. Uma estudante foi a primeira geração da família a acessar o ensino superior. Ela sonhava dar uma viagem para os pais como uma forma de pagar outra dívida — o amor, a dedicação e o esforço que os pais lhe deram. O sonho era que os pais se orgulhassem dela. Mas a estudante não apenas é incapaz de dar a viagem aos pais como volta para a casa deles depois de formada, desempregada, precisando da ajuda da pequena pensão da mãe ou da avó.
A vida vai demorando. Como disse uma mulher que sustentava dois filhos: “Teve época em que a gente comia o resto que buscava na casa de amigos dizendo que seria para o cachorro”. Pouco a pouco, sonhar passa a ser um luxo. “Eu só quero poder viver dia a dia, não tenho mais sonhos nem esperança de sair dessa situação”. Uma pessoa que busca emprego me relatou: “Eu acho que viver só para comer (e olhe lá) é desumano. Eu queria ir num bar, eu queria ir a um cinema e não posso”. De forma semelhante, disse-me outra mulher: “Desumanizar é isso: a gente fica sem poder escolher o que adquire e sem ter acesso ao que nos faz humanos”.
Um homem que largou um emprego formal para começar um negócio pontuou: “Tento me recuperar todos os dias, mas não vejo saída a não ser continuar trabalhando para sobreviver, sem ilusão de ser alguém bem sucedido, simplesmente vou empurrando”.
Nessa direção de uma vida “sem alma”, a grande maioria dos relatos que recebi mencionava a vontade de morrer. “Não é que eu pense em me matar, mas é que dá vontade de desaparecer, não acordar, a gente não vê saídas de como melhorar nesse país. Já são três anos desempregado.”
Não bastasse a angústia, as cobranças e o assédio moral das empresas que cobram as dívidas são constantes.
Além das cobranças a mim, meus filhos, meus irmãos, meu ex-marido, o namorado de minha filha e meus pais (idosos) também recebem telefonemas de cobrança em meu nome, o que constrange a todos e me faz me sentir humilhada e envergonhada perante todos os envolvidos. Fiz diversas reclamações, sem solução. Então, as “vítimas” das cobranças indevidas mudaram seus números de telefone. Resolveu por 6 meses, depois disso voltaram a receber telefonemas de cobrança em meu nome novamente.
Os endividados passam por um profundo processo de humilhação e não é raro serem ofendidos e julgados pelas profissionais que negociam as dívidas: “As ligações eram sempre agressivas e, quando eu pedia parcelamento, o atendente ria ou fazia alguma observação grosseira”.
Chegou uma época em que ninguém atendia o telefone se não desse o código (ligar, deixar tocar duas vezes, desligar e ligar de novo) porque a gente não queria atender cobrança. Ligavam todos os períodos, manhã, tarde e até 10 da noite, querendo cobrar do meu pai o pagamento. Parecia agiota, mas era legalizado né. Uma vez minha mãe atendeu e explicou ao cobrador que meu pai era aposentado e não tinha como pagar, que o mínimo já era o máximo. Ouviu como resposta um “Se não tinha como pagar então não devia ter gasto!”.
Sempre me pergunto se esses profissionais não estão também endividados. Provavelmente, sim. Provavelmente, eles estão reproduzindo a violência a qual também estão sujeitos.

A violência do sistema financeiro

Comecei a me interessar pelo tema da dívida como pesquisadora da economia informal em 1999. Frequentei diariamente o camelódromo de Porto Alegre por muitos anos para a pesquisa. Meus amigos ambulantes não tinham acesso a crédito e viveram, por décadas, em uma economia local de “dinheiro vivo”, recorrendo a empréstimos do “camelô rico”, que tinha sua própria tabela de juros. O sistema local funcionava em sua própria lógica auto-organizada.
Dez anos depois, a situação mudou radicalmente quando dois fenômenos incidiram sobre suas vidas: a inclusão financeira da era Lula e a formalização do camelódromo como um “shopping popular”, em 2009. Os vendedores ganharam ampla linha de crédito pela primeira vez. Em 2010, eu fui rever meus amigos no novo estabelecimento e encontrei todos endividados com bancos.
Na semana de inauguração do “shopping popular”, uma gerente do banco Itaú montou uma banquinha e abriu, em um único dia, 218 contas bancárias para sujeitos que, há décadas, só haviam operado com dinheiro — e muitos sequer eram alfabetizados. Isso fazia com que meus amigos não entendessem as cartas e os boletos que recebiam. Em um ano de formalização, encontrei os comerciantes doentes com pressão alta e estresse por causa das dívidas.
O sistema financeiro funciona como um urubu, oferecendo crédito a novos empreendedores, professores da rede pública com salários atrasados, estudantes e pensionistas. Depois que estão todos com as cordas no pescoço, enrolados em dívidas em um dos sistemas de juros mais altos do mundo, as portas do crédito se fecham. As pessoas caem em uma armadilha. Até que chegam os agiotas e as empresas que oferecem crédito “sem consulta no Serasa”. A situação piora ainda mais.
Ter a autonomia de volta, segundo os relatos que recebi, acontece quando as pessoas conseguem negociar as dívidas depois de muito tempo. Ou, ainda, quando se libertam e aprendem a dar um dane-se para bancos: “Eu aprendi que eu não sou pior porque devo para bancos”. Essa última ideia vai ao encontro do argumento de David Graeber de que a moralidade e dignidade humana não estão necessariamente atreladas ao pagamento de determinadas instituições porque, simplesmente, existem dívidas injustas.
Como me disse um interlocutor: “Dizem que é no comunismo que vão tirar a sua casa e seus bens. Pois foi no capitalismo que meu dinheiro foi tomado e minhas oportunidades de acesso foram negadas.” 
O problema é estrutural, e a sua raiz se encontra no sistema financeiro, que vive para salvar o 1% e aniquilar os 99%. Diante do quadro de desemprego atual, cuja melhora só aponta para geração de “empregos” ainda mais precários, não há um horizonte otimista. A única boa notícia é que, se David Graeber estiver certo, momentos de grande endividamentos são momentos de grandes revoluções históricas.
ANTES QUE VOCÊ SAIA… Quando Jair Bolsonaro foi eleito, sabíamos que seria preciso ampliar nossa cobertura, fazer reportagens ainda mais contundentes e financiar investigações mais profundas. Essa foi a missão que abraçamos com o objetivo de enfrentar esse período marcado por constantes ameaças à liberdade de imprensa e à democracia. Para isso, fizemos um chamado aos nossos leitores e a resposta foi imediata. Se você acompanha a cobertura do TIB, sabe o que conseguimos publicar graças à incrível generosidade de mais de 11 mil apoiadores. Sem a ajuda deles não teríamos investigado o governo ou exposto a corrupção do judiciário. Quantas práticas ilegais, injustas e violentas permaneceriam ocultas sem o trabalho dos nossos jornalistas? Este é um agradecimento à comunidade do Intercept Brasil e um convite para que você se junte a ela hoje. Seu apoio é muito importante neste momento crítico. Nós precisamos fazer ainda mais e prometemos não te decepcionar.Faça parte do TIB 
Fonte.https://theintercept.com/

A IGREJA SE TORNOU ‘UMA INSTITUIÇÃO SOCIAL QUE POR ACASO É RELIGIOSA’, AFIRMA REVERENDA NORTE-AMERICANA



A reverenda Kelly Brown Douglas defende que, embora cada um tenha seus motivos para ir à igreja – ou sair dela –, o fato de muitos religiosos se aliarem a pessoas que defendem ideias claramente opostas às suas crenças e interpretações da Bíblia faz a igreja se afastar do seu papel enquanto instituição. Foto: Cecília Olliveira/The Intercept Brasil
UM NÚMERO SIGNIFICATIVO de americanos se dizem “espiritualizados, mas não religiosos”, segundo um estudo recente do Pew Research Center, um dos mais importantes centros de pesquisa dos EUA. Quatro em cada dez pessoas com idade entre 30 e 49 anos se definem assim. Apesar de não termos uma pesquisa equivalente no Brasil, por aqui também é possível observar um crescimento no número de ‘desigrejados’, pessoas que deixam de frequentar esse tipo de instituição – em grande parte, pela diferença entre o que é pregado e a realidade concreta de suas vidas.
Para entender essa situação – e o papel das lideranças religiosas no Brasil, onde 40% dos evangélicos votaram em um católico que se batizou no Rio Jordão e usa kipá–, conversei em Nova York com a decana da principal universidade de Teologia dos EUA. No entendimento da reverenda Kelly Brown Douglas, embora cada um tenha seus motivos para ir à igreja – ou sair dela –, o fato de muitos religiosos se aliarem a pessoas que defendem ideias claramente opostas às suas crenças e interpretações da Bíblia faz a igreja se tornar uma “instituição social que por acaso é religiosa”.
“‘Ser igreja’ não é tentar proteger uma instituição religiosa, é um movimento no mundo em direção ao que gosto de chamar de ‘uma terra de justiça’”, afirma Brown Douglas. A reverenda lembra a luta de Martin Luther King pelos direitos civis dos negros nos anos 1950 e diz que o risco das congregações optarem por permanecerem caladas frente aos absurdos perpetrados por governantes como Trump e Bolsonaro, em especial contra os mais pobres, é serem relegadas à irrelevância. Se a igreja não lutar, “não encontrando consolo até que haja justiça para todos”, diz ela, “eu me juntarei às pessoas que estão indo embora. Elas são críticas, e precisamos estar onde elas estão.”
Confira os principais trechos da entrevista.
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Decana da principal universidade de Teologia dos EUA, Brown Douglas diz que o risco das congregações optarem por permanecerem caladas frente aos absurdos perpetrados por governantes como Trump e Bolsonaro é serem relegadas à irrelevância.
 
Reprodução: Twitter/Kelly Brown Douglas
Intercept – Nos EUA – e também no Brasil–, tem crescido o número de pessoas que estão abandonando ou mudando de igreja. O que leva a esse movimento?
Kelly Brown Douglas – O que vejo nesse crescente grupo de pessoas que se dizem “espiritualizadas, mas não religiosas” é que não é que elas não tenham uma conexão com algo maior, que muitos de nós chamamos de Deus, ou que não tenham um senso de fé, como se queira definir. A questão é que elas perderam a confiança ou a fé na religião institucionalizada, nas igrejas e em outras instituições religiosas, que elas não consideram sensíveis às suas necessidades, questões e dificuldades, à vida terrena como ela é.
Jesus foi crucificado por afrontar poder político e religioso.
Assim, esse afastamento da religião não é um afastamento da espiritualidade ou das religiões, é um afastamento das instituições religiosas, das igrejas. E isso é um chamado para que as igrejas, como costumo dizer, “sejam igreja”. “Ser igreja” não é tentar proteger uma instituição religiosa, é um movimento no mundo em direção ao que gosto de chamar de “uma terra de justiça”, ou na direção de onde Deus nos chama a uma forma mais justa de viver. Na medida em que as igrejas se preocupam em proteger um prédio ou uma instituição, elas perdem o que as caracteriza e se transformam em uma instituição social que por acaso é religiosa.
Algumas vezes você vê outras pessoas que foram alienadas pela igreja. Isso precisa compelir a igreja a fazer uma autocrítica. Não é culpa delas [das pessoas] que não estejam na igreja, é nossa culpa que a igreja não esteja onde elas estão. A pergunta, portanto, não é o que há de errado com elas, é o que há de errado conosco. É uma resposta bem longa à sua pergunta, mas penso que o movimento de pessoas abandonando a igreja é um reflexo de onde não temos chegado como igreja. E acho que a pergunta deveria ser “onde Jesus estaria?”. Jesus estaria com elas, porque essas pessoas estão lutando por um futuro mais justo.
Esse tipo de êxodo é uma novidade? Qual é o papel da igreja diante de problemas e questões sociais?
Nunca houve um tempo em que não existisse testemunho do que significa ser igreja, setores da comunidade de fé que testemunhassem isso. Então, por exemplo, durante o período da escravidão aqui nos EUA, havia a igreja negra. E a igreja negra, no que ela tem de melhor, sempre esteve engajada em atividades de justiça social e na luta pela justiça social. Não necessariamente em todas as situações, mas fez isso em seus melhores momentos. E mostrou o que tem de melhor sob a liderança, mais contemporaneamente, de Martin Luther King Jr.
Ainda assim, havia um outro lado da comunidade de fé, inclusive da comunidade negra, que dizia a King: “Olha, você não deveria se envolver em questões controversas de justiça social, você só deveria estar preocupado com a salvação das almas”. Então, sempre existiu essa tensão sobre o que significa ser igreja, viver a própria fé.
Como é a relação entre política e igreja?
Quando estamos falando de cristãos e da tradição cristã, estamos tratando de uma religião cujo símbolo central é a cruz e um Jesus crucificado. E nós sabemos o que isso significa: Jesus não terminou na cruz porque rezava demais. Foi porque ele rezava que ele pôde ir para a cruz, isto é, ao ir para a cruz ele se identificou de forma clara com as “classes crucificadas”: os pobres, o andar de baixo do andar de baixo, em sua luta pela liberdade, pela vida, pela humanidade – a humanidade deles. Ele representava um movimento contra qualquer coisa que negasse a humanidade sagrada de alguém, e que pudesse estar no caminho do futuro justo que Deus prometeu a todos. Obviamente, então, ele terminou na cruz por ser uma afronta a ambos, não apenas ao poder político, mas também ao poder eclesiástico, religioso. Assim, na medida em que a igreja é igreja ao se reunir em solidariedade às classes crucificadas que se encontram onde Jesus estava, carregando as cruzes, como dizia Martin Luther King, ela traiu seu chamado a ser igreja. E então outras vozes precisam criticar isso: vozes teológicas, outras vozes da fé, seja quem for.
Como você enxerga esse movimento, que claramente é uma questão de raça? E essas pessoas que agora estão colocando o limite de que as vidas negras importam, mas não veem seus pastores se insurgindo contra a violência policial?
Bem, acho que outros líderes da fé precisam tomar a frente e mudar essa narrativa. E acho que isso está começando a acontecer, porque estamos em um momento urgente nos EUA, com Trump, seu agir político, suas políticas, sua visão… Ele representa um lado obscuro desse país. E é uma verdade trágica que, de fato, está no nosso DNA. Os EUA foram fundados como uma nação para proteger o excepcionalismo anglo-saxão. Essa nação foi fundada para ser a “cidade no alto da colina”, refletir o melhor dos valores anglo-saxões, e a cultura do supremacismo branco veio à tona para proteger isso. É disso que se trata o “Make America Great Again” [Torne a América Grande Novamente, slogan de campanha de Trump]. Tornar a América Branca Novamente, proteger sua herança anglo-saxã, mesmo que seja apenas uma herança mitológica. Por outro lado, os EUA também foram movidos pelo discurso democrata sobre uma terra onde há liberdade e justiça para todos. Então agora esse país tem, citando W.E.B. Du Bois, “duas almas” em guerra. Quem seremos? Essa nação que é a favor e reflete a noção de superioridade e excepcionalismo anglo-saxão, uma nação branca, ou não? Ou viveremos nessa visão democrática de nação?
O que isso significa?
Esse país vem sendo chacoalhado entre esses dois lados sem tomar uma decisão. E é por isso que você vê reemergir esse sentimento Trump. Mas aí vem o que, para mim, é ainda mais perigoso no Trump. As políticas e ideologias de supremacismo branco, o tratamento dado aos imigrantes, nada disso é novo nesta nação, tudo já aconteceu antes. E a nação resistiu e disse “não é isso que queremos ser”. Mas a nação já foi isso e precisa acertar as contas com esse passado. Trump também reflete uma política fascista, e isso é muito perigoso. Ele não está apenas se insurgindo contra a realidade multicultural deste país – ele está se insurgindo contra a democracia. E é isso que provavelmente vai acabar movendo as pessoas brancas, a América branca. Parece que ele pergunta o tempo todo: “Qual vai ser a gota d’água?”. Esse homem, essa história de “Make America Great Again” da campanha… a maior parte dos negros desse país respondeu a isso instintivamente e sabia do que ele estava falando. Ele deixou claro durante a campanha o que estava dizendo. Ele desumanizou imigrantes, chamou mexicanos de estupradores e criminosos e disse que as comunidades negras eram “conclaves de criminalidade”.
Sempre se pode usar a Bíblia para legitimar o que se quiser.
E qual o significado disso para a igreja? Como fiéis negros veem seus líderes apoiando esse discurso que os fere?
Acho que o que está acontecendo agora é que vemos essa América branca dizendo que o que Trump chama de “senso de protecionismo” não diz respeito apenas às pessoas não brancas e a seus corpos negros e pardos. Não é apenas um ataque sobre esses corpos – é também, mas é um ataque fascista, e por isso é um ataque à nossa democracia, por isso é um ataque a todas as nossas liberdades. E agora a igreja, de forma mais ampla – e com isso eu incluo a igreja “branca” –, a comunidade de fé agora está ainda mais suscetível a esse momento. E tenho esperança de que veremos vozes maiores na comunidade de fé tomarem a frente disso, tomarem a liderança e resistirem. E é claro: nós, negros, como vamos permanecer nas igrejas que apoiam isso? Como chegamos lá, para começar, eu não sei, mas como vamos permanecer quando se torna tão claro – se já não estava antes – o que está acontecendo agora? Eles foram longe demais e, para mim, já tinha ido há muito tempo, mas isso ofende a moralidade de qualquer pessoa. Por isso acho que você vai ver, já está vendo, mais pessoas resistindo a isso.
Talvez ele já tenha passado do limite.
Ele passou do limite, e eu acho que, para os cristãos, a gota d’água foi quando o Procurador-Geral citou a Bíblia para defender a política de Trump de separar famílias de imigrantes.
Eu vi isso e não conseguia acreditar, mas ele tem apoiadores no Brasil. Apoiadores brancos. E os mesmos pastores estão usando a mesma passagem.
Sim, porque aquela passagem sempre foi usada, é a mesma passagem que foi usada para justificar a escravidão. E, veja, sempre se pode usar a Bíblia para legitimar o que se quiser legitimar – a Bíblia muitas vezes foi usada para legitimar a opressão do povo. Mas isso vai contra a noção de um Deus que é amor e justiça. Qualquer uso do testemunho bíblico para desumanizar e oprimir outras pessoas é um mau uso. Usar a Bíblia para aterrorizar é um mau uso. Mas as pessoas sempre fizeram isso e vão continuar a fazer. E, ao mesmo tempo, sempre houve outras pessoas que conseguiram resistir e dizer não.
Qual o lugar da igreja nestes tempos?
Esta é a oportunidade de, como já falamos, a igreja ser igreja. James H. Cone, que faleceu recentemente, dizia que haveria um momento em que seria preciso decidir: se a igreja não for tomar a frente, se a cristandade não permitir nem apoiar a luta dos negros pela liberdade, então, vejam só: ele não poderia ser cristão. Ele faria uma escolha entre ser negro e ser cristão. Não é um problema para mim que as pessoas deixem a igreja quando ela não estiver sendo igreja. E se a igreja não entrar na batalha e assumir a responsabilidade de liderança para levar este país a outro ponto, criticando o que está acontecendo e se movendo, lutando por justiça, não encontrando consolo até que haja justiça para todos. Se a igreja não fizer isso, continuar quieta, permanecer ao largo, então eu me juntarei às pessoas que estão indo embora. Elas são críticas, e precisamos estar onde elas estão.
E por que alguns pastores continuam a ignorar as questões sociais e mesmo assim essas igrejas continuam a crescer? Temos esse tipo de movimento no Brasil. Você começa com uma igreja pequena e então alguma coisa acontece e ela fica enorme, com milhares de pessoas.
Um dos movimentos que mais crescem é esse tipo de movimento evangélico carismático pentecostal. E acho que uma das explicações é a necessidade que as pessoas sentem de ter um senso de segurança, um senso de estabilidade, e isso se relaciona às suas dificuldades existenciais pessoais e a todo esse tipo de coisa. Isso dá às pessoas um senso de esperança e, de alguma forma, oferece respostas fáceis às questões complexas da vida. E é o que esse movimento faz, não é? Não é surpreendente. E aí você se pergunta: em sua maioria, quem são as pessoas que gravitam em direção a esse tipo de igreja? Em geral, são as pessoas desfavorecidas. São as classes mais oprimidas.
Sim. Temos várias igrejas pequenas em favelas e regiões pobres, e elas são muito parecidas. É o único vínculo que você consegue ter, o único apoio que tem.
É isso.
Agora temos um prefeito evangélico no Rio, porque ele está usando sua base, suas igrejas, para conseguir votos. Estamos vendo isso em várias cidades e estados. E estamos discutindo isso agora, porque eles têm um plano de poder de chegar à presidência – o que, de certa forma, fizeram. Vocês têm esse tipo de uso da religião para obter poder político?
Bem, você sabe, existe uma “separação entre igreja e estado” aqui, mas…
Nós de certa forma temos.
Sim, claro. Quero dizer… Sim. De formas mais sutis, sim. E é isso que você vê, quer dizer, Trump tem apelo para um certo segmento da comunidade evangélica, que é a base de poder dele. Ele segue falando para ela, e é por isso que diz coisas como “Coloque o Natal de volta em Feliz Natal” [nos EUA, as pessoas usam “Boas Festas”, de forma genérica]. Ele está apelando para sua base de poder evangélica. Então sim, ele sabe exatamente o que está fazendo, e é isso que ele está fazendo. Ou quando fala de algumas pessoas: “se você não é patriota, você não é cristão”, ou “se você não é cristão, você não é patriota”. É a isso que ele está apelando. Está apelando a uma base de poder evangélica, o que também é uma afronta, um insulto a quem somos como país, e ao que significa ser cristão, também. Então sim, sim, as pessoas sempre fizeram isso, e é exatamente o que ele está fazendo.
ANTES QUE VOCÊ SAIA… Quando Jair Bolsonaro foi eleito, sabíamos que seria preciso ampliar nossa cobertura, fazer reportagens ainda mais contundentes e financiar investigações mais profundas. Essa foi a missão que abraçamos com o objetivo de enfrentar esse período marcado por constantes ameaças à liberdade de imprensa e à democracia. Para isso, fizemos um chamado aos nossos leitores e a resposta foi imediata. Se você acompanha a cobertura do TIB, sabe o que conseguimos publicar graças à incrível generosidade de mais de 11 mil apoiadores. Sem a ajuda deles não teríamos investigado o governo ou exposto a corrupção do judiciário. Quantas práticas ilegais, injustas e violentas permaneceriam ocultas sem o trabalho dos nossos jornalistas? Este é um agradecimento à comunidade do Intercept Brasil e um convite para que você se junte a ela hoje. Seu apoio é muito importante neste momento crítico. Nós precisamos fazer ainda mais e prometemos não te decepcionar.Faça parte do TIB 

sábado, 28 de dezembro de 2019

Fique de olho na pipa

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Cubatí PB: Na noite de Natal, vendedor de cachorro quente distribuiu lanches com crianças carentes do município.



Na última quarta-feira (25), o vendedor de cachorro quente na cidade de Cubatí PB, distribuiu na noite de Natal, 680 sanduíches com crianças carentes na sede do município.


O vendedor ambulante José Alves da Silva, realiza essa ação humanitária desde 2012, com a ajuda de colaboradores de Cubatí e cidades vizinhas.


─ Há 7 anos realizo essa ação, esse ano foram 680 sanduíches, eu como vendedor de hot dog, vejo que tem muitas crianças carentes, que não tem condição de comprar um cachorro quente e pelo menos uma vez por ano, tiro um dia para fazer a felicidade dessas crianças – disse José Alves, também conhecido por ‘Cabeção’. 

  
O vendedor acrescentou ainda que sua intenção é fazer com que outras pessoas pensem mais no próximo e também realizem ações dessa natureza.   


Fonte. https://www.clickpicui.com.br/

Nova Iguaçu realiza Dia D Vacinação contra a gripe

A Secretaria Municipal de Saúde de Nova Iguaçu (Semus) vai fazer, neste sábado (13), uma grande mobilização para participar do Dia D de Vaci...