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A guerra é contra as drogas, mas quem morre são meninas negras como Emilly e Rebeca

 A decisão do Brasil de ir contra a reclassificação da maconha deixa claro que a posição do governo atual é manter certos grupos sob controle – no caso, os negros e pobres brasileiros.

A resident of the Complex do Alemao favela collects cases on Itaoca Avenue as Rio de Janeiro's Military Police Special Unit (Choque) carries out an operation at the slum, in Rio, Brazil, on July 16, 2018. (Photo by Mauro PIMENTEL / AFP)        (Photo credit should read MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images)

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A ONU RETIROU a maconha da lista de drogas consideradas “mais perigosas”. Pelos últimos 60 anos, a maconha esteve ao lado de opioides fortes e extremamente viciantes, como a heroína. Mesmo mantendo a cannabis e a resina derivada dela no grupo das substâncias para as quais há recomendação de algum controle, o Brasil votou contra a medida.

Quirino Cordeiro Júnior, secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, já havia adiantado que o Brasil votaria contra a decisão da flexibilização do uso da substância, com a justificativa de que era “uma estratégia comunista de poder“. Isso não é só ridículo como flagrantemente mentiroso.

Quando você analisa a lista dos votos, percebe que o Brasil está exatamente ao lado dos “inimigos comunistas” China e Cuba nesta decisão equivocada. Estão também no mesmo grupo nações com governos autoritários, como Hungria e Turquia. Do outro lado, estão o ex-amigo EUA, Canadá e a maioria dos países europeus. A decisão da ONU não interfere no poder dos países em estabelecerem suas próprias regras e leis.

Ao observar o perfil de muitos dos países que votaram contra a remoção da maconha da lista de substâncias perigosas – especialmente na América Latina e continente africano –, vemos nações que foram colonizadas e sofrem com o racismo.

Racismo é um ponto central desta discussão, pois o proibicionismo do uso de drogas nasceu como uma estratégia do presidente norte-americano Richard Nixon para controlar pessoas e populações “indesejáveis”, como a esquerda anti-guerra e pessoas negras, no fim da década de 60.


Essa intenção foi confirmada em 1994 pelo então chefe de política doméstica de Nixon, John Ehrlichman, que escancarou o mecanismo de criminalização atrelado à política de drogas. “Podíamos criminalizar quem era anti-guerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois”, disse Ehrlichman. E finalizou que assim “poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos”.

Similar a alguma abordagem que conhecemos?

É impossível falar de política de drogas sem mencionar o controle de pessoas e a construção de inimigos. Essa política faz parte de um sistema racista complexo que, no Brasil, tem vitimado civis e agentes de segurança negros, encarcerado e confinado pessoas negras em bairros pobres. É um sistema bem-sucedido para o que pretende.

Sem a sua ajuda o Intercept não existeAtençãoSem a sua ajuda o Intercept não existe

Na prática isso funciona assim: duas crianças negras, Emilly e Rebeca, brincando na porta de casa são mortas durante ação policial num bairro pobre da Baixada Fluminense. PMs tentavam abordar dois caras numa moto. A Polícia disse que não disparou. As armas dos PMs foram apreendidas. Desculpas genéricas do tipo “nós daremos uma resposta à sociedade” não mudam o fato que este ano 22 crianças foram baleadas no Grande Rio – oito delas morreram. Os dados do Fogo Cruzado revelam a barbárie em forma de política pública.

Mas essas mudanças de agora não são um ato de bondade. Afinal, esta decisão não foi tomada quando o secretário de Nixon assumiu o objetivo da política. É uma decisão econômica aliada a novas pesquisas que mostram os efeitos medicinais da maconha em doenças para as quais a indústria farmacêutica ainda não apresentou soluções. Em 2007, a maconha já era considerada o “maior produto agrícola” dos EUA. Pouco mais de uma década, a maconha é uma indústria bilionária. Só neste ano, quatro estados legalizaram o uso da planta por lá.

Agora, nos mesmos EUA, berço da repressão contra o tráfico e uso de drogas, veteranos de guerra usam maconha para tratar doenças relacionadas a traumas de guerra. A planta também tem sido usada no tratamento de enfermidades cujas soluções tradicionais não apresentavam sucesso como dores crônicas, esclerose múltipla, epilepsia etc. No Brasil, mães religiosas, como Rosineide da Silva, venceram o preconceito e hoje lutam para ter acesso legal ao THC, óleo extraído da planta proibida, para tratar seus filhos.

Mas para manter pessoas como Rosineide no cabresto da mentira, governos mentem. Muito. Deliberadamente. Não importa a que custo. Em abril de 2019, o Intercept revelou que Secretaria Nacional de Política de Drogas, a Senad, órgão do Ministério da Justiça, escondeu uma pesquisa feita pela Fiocruz que mostrava que não há uma “epidemia de drogas” no Brasil. A pesquisa revelava o oposto do que governos sustentaram por anos.

Até governos progressistas, como os do PT, reforçaram tais visões. Em 2006, quando foi aprovada a nova Lei de Drogas, o Brasil era o quarto país que mais prendia gente no mundo. Hoje, o número de presos dobrou, e pulamos para o terceiro lugar. Um em cada três responde por tráfico de drogas – a maioria, negros. O estado policial foi incrementado com a criação da Força Nacional e o uso do exército em favelas.

Desde o início da “guerra às drogas” até agora, esta política continua resumida à frase dita pelo ex-secretário de Nixon décadas atrás: “Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim.”

Fonte. https://theintercept.com/


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