Os “anos dourados” da liberdade e da igualdade romana estavam por terminar, emergindo o ocidente numa era de obscurantismo sem precedentes: a Idade Média (476-1453). IV. Da Idade Média até o século XX: Ela já foi chamada, não sem certa razão, de “idade das trevas”, “noite dos mil anos” ou até “os mil anos que a humanidade passou sem tomar banho”… Época em que os que pensavam diferentemente do que pregava a Igreja ardiam nas fogueiras da Inquisição, em que o sexo foi confinado à função de garantir a procriação e em que qualquer forma de prazer foi condenada como sendo pecaminosa, o corpo foi considerado como a sede de todos os males. Uma das pessoas que arderam nas labaredas do Santo ofício foi Joana D’Arc, ironicamente canonizada pela Igreja Católica no século XX. Um dos motivos de sua condenação foi o fato de usar roupas masculinas e cabelos curtos, talvez um índice exterior de sua orientação sexual: Para transformar a pena de morte em prisão perpétua, assinou uma abjuração em que prometia, entre outras coisas, não mais vestir roupas masculinas, como forma de demonstrar sua subordinação à igreja. Dias depois, por vontade própria ou por imposição dos carcereiros ingleses, voltou a envergar roupas masculinas. Condenada à fogueira por heresia, foi supliciada publicamente na praça do Mercado Vermelho, em Rouen, em 30 de maio de 1431. [25]Até mesmo a representação humana em pinturas e esculturas tornou-se cada vez mais idealizada e esquemática, para que não gerasse concupiscência e não inflamasse os ânimos. Embora “oficialmente” a idade média se encerre em 1453, podemos sentir seus nefastos efeitos sobre a postura sexual das pessoas até o final do século XVIII pois ainda em 1790 ocorreu a visitação do Santo ofício ao Grão-Pará, para perseguir os hereges, as bruxas e os sodomitas…Ainda ardiam fogueiras em Lisboa, em Évora, em Goa e em várias outras cidades, sedes dos Tribunais e morada dos terríveis inquisidores. 1476 (09 de abril) - Leonardo da Vinci comparece perante o tribunal de Florença para responder à acusação de sodomia, juntamente com um tal de Baccino alfaiate, Jacopo Saltarelii ourives, Bartolomeo de Pasquino ourives e Lionardo de Tornabuoni que, como Saltarelli, vestia-se de negro. A pena legalmente prevista era a morte na fogueira, mas eles acabaram absolvidos por falta de provas. Ninguém testemunhou contra os cinco homossexuais, especialmente para não se indispor com Lourenço de Médicis, soberano da cidade toscana e primo de Tornabuoni. A absolvição permitiu que Leonardo da Vinci vivesse mais 43 anos deixando um acervo incomparável de obras artísticas, científicas e culturais. Uma fogueira chegou perto de privar o mundo de um dos homens mais extraordinários de todos os tempos. Quem passou pelas amarguras da homossexualidade foi também seu contemporâneo, Michelangelo Buonarotti. Viveu uma vida de asceta e de trabalho, dilacerando-se entre as paixões que lhe permitiram criar o “Juízo Final” da capela Sistina no Vaticano e sua religiosidade de cristão convicto. Dele é a frase, “O meu contentamento é a melancolia”. 1500 - Ao desembarcar no Brasil, os portugueses encontram muitos índios e índias praticantes do “abominável pecado de sodomia”. 1521 - As Ordenações Manuelinas, o mais antigo Código Penal aplicado no Brasil, prevê a pena de morte na fogueira, confisco de bens e a infâmia sobre os filhos e descendentes do condenado por sodomia (atividades homossexuais). 1532 - Nas Cartas Régias de doação das capitanias hereditárias el Rei determina a pena de morte aos sodomitas, que pode ser aplicada sem consulta prévia à Metrópole. 1547 O jovem criado em Lisboa, Estêvão Redondo, tido como o primeiro homossexual degredado para o Brasil, chega em Pernambuco. 1557 - Em Viagem à Terra do Brasil, Jean de Lery refere-se à presença entre os Tupinambá de índios “tibira”, praticantes do pecado nefando de sodomia. 1575 - André Thevet em Singularités de la France Antarctique, refere-se à presença de “berdaches” (índios travestidos) entre os Tupinambá. 1576 - Pero M. Gandavo no Tratado da Terra do Brasil afirma: “Há índias entre os Tupinambá que se comunicam como marido e mulher”. 1580 - Isabel Antônia, natural do Porto, considerada a primeira lésbica a ser degredada para o Brasil, é processada pelo Bispo de Salvador. 1580 - Fernão Luiz, professor mulato, morador na Bahia, mata seu jovem parceiro e sua família para não ser denunciado à Inquisição: é a primeira reação conhecida de um sodomita do Brasil para escapar da ameaça da Inquisição. 1586 - Gaspar Roiz, feitor e soldado da Bahia, suborna um padre para queimar o sumário de culpas que o acusava de sodomia – é a segunda reação conhecida de um sodomita contra a repressão inquisitorial. 1587 - Gabriel Soares de Souza, em seu Tratado Descritivo do Brasil, afirma: “Os Tupinambá são muito afeiçoados ao pecado nefando”. 1591 - Padre Frutuoso Álvares, na Bahia, torna-se o primeiro homossexual a ser inquirido pela Inquisição no Brasil. 1591 - Tem-se conhecimento de Francisco Manicongo, escravo africano de Salvador, que passa a ser considerado o primeiro travesti do Brasil. 1592 - Na Bahia, Felipa de Souza passa a ser considerada a primeira lésbica a ser açoitada publicamente pela Inquisição no Brasil. 1613 - Em São Luís, Maranhão, o índio Tibira, um tupinambá, é executado como bucha de canhão pelos capuchinhos franceses, sendo considerado o primeiro homossexual condenado à morte no Brasil. 1621 - No Vocabulário da Língua Brasílica, dos Jesuítas, aparece pela primeira vez referência a “Çacoaimbeguira”, entre os Tupinambá, que quer dizer mulher macho que se casa com outras mulheres. 1678 - Um moleque escravo de um Capitão de Sergipe é açoitado até à morte, quando se descobre que era sodomita. 1810 - A adoção do Código Napoleônico retirou os delitos “homossexuais” do Código Penal da França. (ressalte-se que na época a palavra e o conceito de homossexual ainda não existiam como hoje o entendemos). Embora tenha havido a Reforma Religiosa, e o surgimento das Igrejas Protestantes, este fato em nada arrefeceu a caça aos “sodomitas”, pelo contrário, recrudesceu-o. As igrejas reformadas terão posturas ainda mais radicais do que o catolicismo em relação aos “pervertidos”, envolvidos no “vício nefando” e no “pecado contra a natureza”. Esta radicalização se deve, em parte, à relativa tolerância de alguns papas, durante o Renascimento Cultural e Maneirismo, que empregaram artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo Buonarotti, Caravaggio e até Sodoma (cujo codinome não deixa margem a dúvidas) aos seus serviços, identificando para sempre a corte dos papas, no imaginário dos reformadores como Lutero e Calvino, ao “vício grego”. A situação sofrerá ligeira transição a partir do Iluminismo, quando o discurso religioso foi sendo substituído pelo discurso médico e quando a religião cedeu o seu posto à ciência. Neste momento o homossexual, de ambos os sexos, deixou de ser visto como um pecador para passar a ser visto como um doente mental, que precisava ser tratado, ou então isolado em instituições psiquiátricas. A perseguição, alicerçada pelo preconceito e o medo ao diferente, continuará a existir: 1869 - O médico austro-húngaro Karoly Maria Benkert cria o termo homossexual que passa a ser usado amplamente, passando o homossexualismo a ser tratado como categoria científica, uma “anomalia” a ser estudada pela ciência. 1871 - O parágrafo 175 é introduzido na legislação penal alemã para punir o comportamento homossexual entre homens. É prevista pena de até dez anos de prisão e reeducação para os gueis. 1894 - O termo lésbica é publicado no Brasil pela primeira vez em Atentados ao Pudor, de Viveiros Castro. 1900 (30 de novembro) - Morre Oscar Wilde, poeta inglês que manteve um relacionamento apaixonado e conturbado com o jovem Lord Alfred Douglas, apelidado de “Bosie”. Por ter sido acusado de “sodomita afetado” pelo pai de Bosie, o Marquês de Queensberry, Oscar, em resposta, o processa por calúnia. Porém, a homossexualidade ainda era ilegal na Inglaterra e Oscar acaba por ser destruído pelas provas apresentadas, sendo preso pelo rei e condenado por conduta homossexual a 2 anos de prisão com trabalhos forçados. As condições da prisão causaram-lhe uma série de doenças que o levaram às portas da morte. No cárcere escreveu a Bosie uma carta épica profundamente emocionante: “De Profundis”, explicando por que ele não poderia mais vê-lo. Quando foi solto, em 1897, procurando aplacar a culpa que sentia, Oscar resolve voltar para junto de seus filhos e sua mulher Constance, dos quais havia se separado para ficar com Bosie. No entanto, a situação não durou por muito tempo e não resistindo à separação do companheiro, Oscar retorna para Bosie, mesmo sabendo que a relação estava condenada. Ele termina a vida como um homem arruinado. É sua a famosa frase: “Neste mundo há somente duas tragédias. Uma é não conseguir o que se quer, a outra é consegui-lo”. Apenas em 1985 a Organização Mundial de Saúde retiraria a homossexualidade do elenco das patologias, proscrevendo o termo “homossexualismo” (“ismo” é o sufixo que designa as patologias). Em nossa época, no entanto, ainda persistem arcaicos discursos religiosos, mesclados às experiências pretensamente científicas de tentar “reverter a homossexualidade”, estimuladas pelos segmentos conservadores da sociedade, especialmente a classe média. V. Situação atual: Foi o marxismo a primeira corrente filosófica a desvelar o caráter profundamente reacionário das camadas médias da sociedade, as quais anseiam ascender socialmente e, portanto, desejam a manutenção das estruturas sociais como elas estão. No mundo dos muito ricos, tanto quanto no mundo dos muito pobres, por motivos totalmente diversos, nunca houve posições excessivamente radicais contrárias á homossexualidade. Os muito ricos têm tantas posses, e a sua situação social já está de tal forma consolidada, que nada há a temer; eles estão acima da moral média da população, não sendo sujeitos aos juízos desta (são, neste sentido “amorais”). Os muito pobres, por sua vez, porque nada tem, também não tem nada a perder e ninguém procura moralizar as suas condutas, até porque, muitas vezes, vivem à margem da sociedade. São facilmente cooptados por ideologias conservadoras, como as Igrejas Evangélicas, mas são muito mais atraídos por uma “teologia da prosperidade” (a promessa de sua redenção econômica, que é deste mundo) do que por seus preceitos morais. Interessa-lhes muito mais o alimento, a roupa e a moradia para o corpo, aqui e agora, do que a salvação da alma, para a genérica “eternidade”. Para as camadas médias, pelo contrário, mais do que uma subversão moral, a homossexualidade é hoje uma inversão da ordem social, política e econômica vigente pois, ao questionar o casamento heterossexual e monogâmico, acenando com novas possibilidades, coloca em risco a possibilidade da concentração da propriedade e a manutenção do status quo . Ao acenar com a Parceria Civil Regulamentada, por exemplo, os homossexuais subvertem as prerrogativas de herança dentro de um mesmo núcleo familiar, a concentração da renda familiar e, algumas vezes, até a posse dos meios de produção sendo, portanto, excessivamente revolucionários para serem tolerados ou absorvidos. Eis porque os segmentos médios da população tem horror à homossexualidade! |