É a comunicação, abestado! A guerra de hoje se trava nos fluxos de sentido
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” O diagnóstico de Mark Fisher (2020) é uma verdade amarga em um mundo onde crises se multiplicam, mas a estrutura que as causa permanece intocada. Só que talvez, no fundo, o que temos mesmo dificuldade de imaginar é o fim da hegemonia comunicacional que sustenta esse capitalismo. Porque não é só o sistema que se mantém, é o enredo que o justifica, os afetos que o naturalizam e os filtros cognitivos que o tornam invisível.
A guerra de hoje se trava nos fluxos de sentido. E o campo de batalha vai muito além do simbólico: ele é técnico, afetivo, digital, e, sobretudo, profundamente material. Como insiste Reynaldo Aragon, quase como um profeta solitário na coluna azul deste espaço, o debate sobre soberania informacional segue rarefeito, atropelado pela avalanche dos fatos políticos. Enquanto poucos conseguem respirar para pensar na estrutura, o Brasil se consolida como laboratório de guerra híbrida, onde o alvo não é apenas a soberania territorial, mas a capacidade de um povo controlar seus dados, suas narrativas e suas infraestruturas comunicacionais. Nessa guerra, a comunicação não é só instrumento, é o próprio chão da batalha.
Nancy Fraser (2020) nos oferece um mapa para entender o que está em jogo. O capitalismo, diz ela, não é apenas um modo de produção, mas uma ordem social complexa, baseada na separação institucional de esferas como economia, reprodução social, natureza e Estado. Essa separação, porém, é ilusória. A economia capitalista só funciona subordinando e esgotando essas esferas, e entre elas está a comunicação. Quando a mídia, os algoritmos e os discursos estão a serviço da acumulação, não há democracia possível.
Essa dominação comunicacional não é inocente nem espontânea. Ladislau Dowbor (2022) mostra como o eixo do poder capitalista migrou das fábricas para as plataformas digitais, onde o valor é extraído por meio da manipulação de dados, afetos e atenção. “Onde dominava a fábrica, hoje temos o domínio das plataformas em escala planetária”, afirma o economista. Trata-se de uma nova forma de exploração, que não apenas extrai riqueza, mas modela subjetividades.
É nesse ponto que a psicopolítica, o controle dos afetos e da atenção, entra em cena. A captura algorítmica de desejos, medos e crenças permite às grandes plataformas moldar o que é percebido como realidade. E quando a realidade passa a ser mediada por sistemas opacos e privados, a política se transforma em performance, e a verdade em ruído.
Não é à toa que Jessé Souza (2024) provoca: “Nunca foi a economia, tolinho!”. Foi sempre a manipulação simbólica, a engenharia do afeto, a pedagogia do ressentimento. O “pobre de direita” não é um paradoxo sociológico: é o produto de uma estrutura que ensina o explorado a odiar o explorado, o negro a desconfiar do negro, o trabalhador a desconfiar de si. E tudo isso se ensina com palavras, imagens, discursos, narrativas, comunicação, em sua forma mais perversa.
É por isso que qualquer projeto de reconstrução democrática precisa começar com a disputa comunicacional. Como insiste Nancy Fraser (2019), o populismo de direita venceu não por ter soluções, mas por ter enredos. A esquerda, quando renuncia à comunicação, renuncia à política. E sem política, não há projeto que sobreviva, por mais justo ou bem-intencionado que seja.
Com as eleições de 2026 no horizonte, há um risco real de que a figura do “pobre de direita” seja transformada em uma bandeira poderosa da direita, uma narrativa que, embora contraditória, possui enorme apelo comunicacional. Se a esquerda não ocupar esse espaço com histórias que ressoem com as experiências e aspirações do povo, corre o risco de ser novamente superada por narrativas que, mesmo prejudicando os mais vulneráveis, oferecem pertencimento e identidade.
E agora, José?
Belchior, em "Como Nossos Pais", canta a amarga constatação de que, apesar das lutas e sonhos, a juventude se vê repetindo os erros da geração anterior: “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Essa música, composta em 1976, reflete a desilusão de uma geração reprimida pela ditadura militar, mas também fala de esperança e luta por mudanças e sobre os conflitos de gerações.
O realismo capitalista descrito por Fisher (2020) não é apenas um diagnóstico teórico. Ele se traduz no cotidiano: na apatia política, na desconfiança generalizada, na ideia de que “não tem jeito”. Mas essa sensação é produzida, ensinada, cultivada por sistemas de comunicação que nos treinam para não acreditar, não confiar, não imaginar. Como se a impotência fosse natural, e a dominação, inevitável.
Victor Marques, no prefácio escrito para Fraser (2020), destaca o que ela chama de neoliberalismo progressista, ao se apropriar de movimentos sociais como o feminismo e o antirracismo, criou uma falsa sensação de inclusão enquanto mantinha estruturas de poder inalteradas. Essa análise nos ajuda a entender como, apesar das mudanças aparentes, continuamos repetindo padrões do passado.
Como arma nesta guerra, Reynaldo Aragon propõe a construção de um ecossistema de soberania informacional baseado em letramento midiático, uso crítico de tecnologias e modelos tecnocientíficos de resistência. Em sua tese, ele mostra como a desinformação, o lawfare e as operações psicológicas moldam a percepção pública, e como ferramentas como o prebunking e o debiasing podem funcionar como formas de inoculação cognitiva. Em outras palavras: se a guerra é psicológica, a defesa precisa ser educativa.
É a comunicação, abestado! É nela que o capitalismo se reinventa, se perpetua e se protege. É nela que se joga a possibilidade do futuro. E se quisermos outro mundo, ele terá que ser falado, escutado e narrado por outras vozes, com outras palavras e por outros meios. Porque quem não comunica, consente. Ou pior: colapsa.
Brasil247.com
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