Enquanto a estrutura que justifica o racismo não mudar, racistas passarão

(Foto: Pixabay)

Embora pertinente, o argumento estrutural os isenta de responsabilidade sobre os próprios atos.

Tudo é estrutural? De certa forma, sim. Mas precisamos bater um papo sobre responsabilidades individuais e coletivas. Responsabilidade é uma ação que vem de dentro de cada indivíduo, como um senso de comprometimento para tomar decisões e assumir as consequências em virtude delas. A responsabilidade, ou a ausência dela frente aos nossos atos individuais, pode interferir diretamente na coletividade. Alguém que dirige bêbado, por exemplo, assume a responsabilidade de cometer um acidente de trânsito e gerar vítimas fatais a partir dele. No caso do racismo, a questão estrutural da nossa sociedade, ao mesmo tempo em que põe luz sobre o debate racial, acaba por isentar quem pratica tal crime de ser punido pela lei. Talvez, por isso, ninguém nunca tenha cumprido pena por racismo no Brasil.

Trago esta reflexão à pauta, após assistir mais um vídeo no qual pessoas pretas são constrangidas dentro de uma loja, apenas por serem pretas. Falo, mais especificamente, do caso ocorrido com a ex porta-bandeira da Portela, Wilma Nascimento, que foi obrigada a retirar todos os pertences de sua bolsa para provar que não havia furtado nenhum produto da loja Duty Free do aeroporto de Brasília. Uma senhora de 85 anos de idade, que já vivenciou as múltiplas fases e faces do racismo na nossa sociedade, ser submetida a tamanha humilhação no meio do estabelecimento, na frente de outras pessoas, é, no mínimo, absurdo. E o paradoxo conflitante, mas não atípico em casos de racismo, é que a opressora de Dona Wilma também é uma mulher preta que trabalha como segurança da loja e que, muito provavelmente, também sofre racismo quando não está revestida do poder que o uniforme de segurança lhe confere.

Quando o poeta e escritor James Baldwin disse que "ser um negro relativamente consciente, é estar quase sempre com raiva.", ele resumiu o sentimento de boa parte de nós que não mais aguentamos presenciar situações de racismo no ambiente social e saber que os praticantes desse racismo não são punidos pela lei. E se a lei não os pune, é porque a nossa sociedade é muito mais racista do que nos faz sentir na pele. Quando pretos reproduzem comportamentos racistas contra outros pretos, de certa forma, eles são instados pela branquitude a cometê-los sob a ideia de que serão vistos como menos pretos do que os demais. É uma ideia de melhor aceitação social baseada no afastamento de suas origens étnicas e raciais, que permeia tal comportamento, mas compromete toda a luta antirracista. Portanto, quando ouvirem dizer que os pretos são mais racistas com eles mesmos do que os brancos, desconsiderem. Porém, ao ouvirmos que muitos pretos são inimigos da sua própria causa e existência, temos que refletir a respeito.

Seguir culpando apenas a estrutura pelo comportamento racista das pessoas, é repetir o discurso neopentecostal evangélico que culpa apenas o diabo pelo mau-caratismo de muitos ditos cristãos. É isentar as pessoas de responderem por suas atitudes individuais, transformando-as em seres incapazes de raciocinar por elas mesmas e de exercerem empatia pelos outros baseadas num simples pensamento: e se fosse comigo? Apesar de forte, a estrutura racializada da nossa sociedade não é capaz de mudar a essência humana de ninguém que já não tenha a predisposição para tais comportamentos. Se assim o fosse, todo pobre que passasse por necessidades financeiras iria recorrer a ganhos ilícitos para sobreviver. Afinal, a estrutura social que faz da desigualdade econômica um divisor de classes sugere isso. E lembro a filósofa Márcia Tiburi, que foi massacrada ao defender a lógica do assalto no mundo capitalista. Algo que também me soou absurdo na ocasião, mas que depois analisando dentro da perspectiva proposta por ela, fez todo sentido. Quando não se tem dinheiro ou não é branco no capitalismo, muitos buscam alternativas pouco ortodoxas para compensar tais "defeitos".

Eu, particularmente, não buscaria tais alternativas. Mas não julgo quem faça. Imagina ser preto, honesto e passar fome, num mundo onde tantos que possuem muito dinheiro e são brancos, roubam mais do que aqueles que teoricamente teriam motivos para roubar ou furtar, apenas por uma questão de sobrevivência. O que nem deveria ser considerado crime. Voltando ao preconceito estrutural, a partir do momento em que as pessoas começarem a ser responsabilizadas pelo racismo que cometem, sejam elas brancas ou negras, conscientes ou não, elas começarão a refletir sobre a necessidade de uma mudança estrutural. Tanto na sociedade, como no seu modo de pensar e agir. A segurança que constrangeu Dona Wilma foi demitida. Isso poderá fazer com que ela venha a refletir sobre os seus atos, independentemente do que a estrutura possa induzi-la a fazer. A loja deveria ser fechada por um período, multada e seus donos responsabilizados criminalmente. Alguns dirão que não é justo com as outras pessoas que lá trabalham, precisam do emprego e que também seriam punidas financeiramente com a ação. A ideia é exatamente essa. Lembram do que eu escrevi acima, sobre provocar reflexão acerca de uma necessidade urgente de mudança estrutural? Se alguns tentam justificar que elas agem de forma racista para garantirem seus empregos, porque não deixariam de agir de forma racista pelo mesmo motivo? Não é pela necessidade do trabalho que elas oprimem os seus iguais? Deixariam de oprimir se isso lhes oferecessem o risco de ficarem desempregadas.

Está na hora de pararmos de naturalizar a falta de caráter dos racistas, sob o argumento da estrutura social a qual eles estão submetidos. E a equação é simples. Basta somar às suas vidas o preconceito que elas fazem multiplicar na vida de quem eles oprimem. Você gostaria de ser tratado como você trata as pessoas? A resposta nada tem a ver com conceitos estruturais. Tem a ver com civilidade, urbanidade, respeito e humanidade.  Um branco gostaria de ter a sua honra posta em dúvida só porque historicamente os brancos são usurpadores, opressores e assassinos? Porque são. E quero ver me desmentirem, vivendo num país que foi gerado nas entranhas da invasão, da escravização e da dor de milhões de seres humanos forçados a trabalharem de graça para construir o seu progresso. Se você se sente à vontade oprimindo e humilhando os outros, o problema está na sua estrutura interna. E ela só será mudada em duas situações: Seja através de um processo de conscientização social - o que eu acho mais difícil sem que haja uma mudança estrutural – ou por meio de responsabilização criminal, o que eu entendo como o mais eficaz, porque começa a promover uma mudança na estrutura, tanto interna do indivíduo, como externa na coletividade. Na verdade, o racismo nunca acabará. Mas os racistas precisam ser duramente responsabilizados.

Fonte.

Ricardo Nêggo Tom

Cantor, compositor, produtor e apresentador do programa Um Tom de resistência na TV 247

Brasil247.com


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