Abandono de menores em alta no Estado: menino de 9 anos sai para jogar bola e, ao voltar, família havia se mudado

Emergência.Crianças brincam no abrigo Vivendas da Fé, em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, para onde Lucas foi levado após ficar nas ruas sozinho por dez dias. Hoje ele está numa casa de guardiões

O drama do garoto é um dos 168 casos de abandono registrados no Módulo Criança e Adolescente (MCA), ferramenta do Ministério Público do Rio (MP-RJ). Ao todo, há 1.471 menores abrigados no estado

A chuva repentina encharca a camiseta e o short de Lucas (nome fictício). É noite de sexta-feira, 29 de setembro de 2022. O garoto de 9 anos corre descalço pelas ruas de um bairro da Zona Oeste do Rio, em busca de abrigo, até chegar a uma padaria, onde entra afobado às 19h40. Assustada, a atendente olha para ele e pergunta: “O que você está fazendo aqui, menino?”. Olhando para ela, Lucas responde: “A minha mãe foi embora com os meus irmãos, me abandonou”.

Mesmo sem conhecer o menino, ela o abriga em sua casa, dá comida e toalhas para a criança se secar e busca entender melhor a situação. Na manhã seguinte, a mulher vai à delegacia registrar uma ocorrência — uma das bases deste relato, no qual os nomes e endereços foram omitidos para preservar a identidade do garoto. A roupa molhada e os pés sujos de lama são apenas a ponta da história de Lucas.

Mudança numa carroça

Dez dias antes de chegar à padaria, o garoto estava jogando bola com colegas do bairro em um campinho comunitário. Ao voltar para a casa, de apenas um cômodo, estranhou a porta aberta. Os móveis haviam desaparecido. Lucas gritou pela mãe e pelos irmãos, em vão. Correu então até os vizinhos em busca de informações sobre a família. “Ué, eles se mudaram. O que você está fazendo aqui?”, perguntou um deles — que também prestou depoimento dentro da investigação sobre o abandono da criança.

Após colher o relato da atendente, a polícia foi até a casa do menino e confirmou o sumiço da família. Por causa da chuva, o imóvel estava alagado. Um dos agentes foi em busca de testemunhas e descobriu detalhes da mudança: a mãe havia colocado os poucos pertences em uma carroça puxada por um cavalo, pegou os dois filhos mais novos, com idades inferiores à de Lucas, e foi embora.

Do pai, ninguém sabe, nem mesmo o menino. A mãe é dependente química, conhecida na vizinhança pela quantidade de filhos — 11 ou 12, a depender de quem conta. O número, porém, diverge do disponível no sistema de nascimentos e óbitos do Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ): lá, sete crianças estão registradas tendo ela como mãe.

A mulher tem pouco mais de 40 anos, mas, devido ao uso constante de drogas, os vizinhos a descrevem com a aparência de uma pessoa idosa. Ela morou em diferentes endereços no bairro — o último conhecido é um quartinho onde dormia com os filhos. De acordo com os vizinhos, ela era vítima de violência doméstica e tentava, constantemente, afastar-se do atual namorado.

Oito meses no abrigo

Sem encontrar os parentes de Lucas, a polícia acionou o Conselho Tutelar da região e levou o garoto, por ordem da Justiça, para o abrigo Vivendas da Fé, em Guaratiba, na Zona Oeste, onde ele ficou por oito meses. Há pouco mais de 20 dias, Lucas foi integrado a uma família acolhedora, modalidade na qual a criança ou adolescente fica temporariamente sob cuidados de guardiões, até voltar para os responsáveis, ser adotado ou completar 18 anos.

A Verônica Abreu, diretora do abrigo, e outros funcionários, Lucas disse ter quatro irmãos. Apesar da idade, lê e escreve muito mal. Não estava matriculado numa escola nem com a carteira de vacinação em dia. Também não tinha identidade, documento feito posteriormente pelos profissionais do local. Com as aulas oferecidas ali, ele foi, pouco a pouco, alfabetizado, e também recebeu as imunizações pendentes.

— Ele é um menino comprido, bem magrinho mesmo, daqueles que só se alimentam de macarrão com salsicha ou instantâneo. A pele é manchada, o olhar duro. A altura e a maturidade fazem com que ele pareça mais velho, como se tivesse bem mais de 9 anos. Mas é só uma criança — diz Verônica.

Em abril deste ano, depois de muita procura pelos parentes de Lucas, uma audiência com representantes do abrigo e da Justiça marcou a destituição do poder familiar e o encaminhamento da criança à adoção. Para não ficar no abrigo institucional, o menino, que havia feito aniversário naquele mesmo mês, foi levado para a casa dos guardiões, onde está atualmente.

— É sempre muito difícil contar a uma criança que ela não poderá voltar aos pais. Com ele, não foi diferente. Lembro que ele me olhou, chorou calado. A lágrima descia dos olhos e ele não dizia nenhuma palavra. Voltou para o abrigo transtornado, fez confusão com outros meninos. Foi a forma que ele encontrou de extravasar. A gente se abraçou depois, tentei acalmá-lo — revela a diretora.

O abandono de Lucas é um dos 168 registrados no Módulo Criança e Adolescente (MCA), ferramenta do Ministério Público do Rio (MP-RJ). Em dezembro do ano passado, última data disponível, a plataforma contabilizava 1.471 menores abrigados em todo o estado. Os principais motivos são negligência (no topo do ranking), abusos sexual, físico e psicológico e situação de rua.

Refúgio de emergência

Cada uma das crianças e adolescentes abrigados exige uma atenção específica da Justiça e do MP-RJ, responsáveis por decidir se eles poderão retornar aos pais, se serão integrados à família extensa (avós, tios, primos) ou encaminhados para adoção. Em tese, eles só podem ficar sob os cuidados do Estado por até 18 meses, mas em casos específicos — como quando nenhum pretendente aparece — esse período é prolongado.

De acordo com Sérgio Luiz Ribeiro, juiz da 4ª Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso, os abrigos são como as UTIs dos hospitais, uma instância emergencial de refúgio para crianças e adolescentes:

— O acolhimento é uma forma de proteção, uma medida adotada quando a criança ou o adolescente não tem mais para onde ir em segurança. A gente só solicita o encaminhamento do menor para um abrigo quando todas as possibilidades de mantê-lo com os parentes são frustradas.

A psicóloga Luiza Martins, que atua na 4ª Vara, comenta que, atualmente, os casos de violação contra os menores são tão frequentes que há lista de espera para os programas de acolhimento. A violência, conta ela, deixa marcas profundas nas crianças, e, muitas vezes, trabalhar psicologicamente os danos deixados é um trabalho sem previsão de resultados.

— As famílias estão tão violadoras que os abrigos podem se tornar o melhor lugar do mundo para as crianças. Se elas são levadas para lá, é porque todas as instituições de proteção falharam, como pais, parentes, sociedade e Estado. As vítimas passam a lidar com sentimentos de rejeição, medo, raiva... E acreditam que jamais poderão ser amadas, não conseguem confiar — expõe Luiza.

Aumento nos índices

No registro de ocorrência, o crime contra Lucas foi classificado como abandono de incapaz, o mesmo praticado contra 415 menores de até 17 anos no ano passado, de acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP). O número representa um aumento de 14% em relação a 2021, quando foram registrados 363 casos.

Esse crime não é o único contra menores com crescimento em 2022. Além dele, o ISP também aponta expansão dos números de lesão corporal dolosa, com 4.820 crianças e adolescentes sendo vítimas no ano passado, um aumento de 30% em comparação a 2021. Já o crime de maus-tratos teve 1.075 registros em 2022, uma alta de 21%.

Ao todo, somando-se registros de lesão corporal, estupro, maus-tratos e abandono de incapaz no estado do Rio, todos cometidos contra crianças e adolescentes, o total chega a 10.391. O número equivale a uma ocorrência por hora, em média.

Apesar de não ser possível relacionar os dados do instituto com os disponibilizados pelo MCA, uma vez que nem toda criança ou adolescente vítima de violência é levada para abrigos, a situação tem preocupado ativistas da infância e juventude, como a conselheira tutelar e advogada Patrícia Félix.

— A gente, enquanto sociedade, ainda não conseguiu desconstruir a cultura de violência contra crianças e adolescentes. Não sabemos vê-los como sujeitos de direito, e isso nos impede de olhá-los com respeito. É aquela situação de bater quando fazem bagunça, pirraça ou dão uma resposta contrária ao esperado. Mandar calar a boca, impedir que tenham opinião e se expressem, é deixar trancados dentro de casa, privar de liberdade e afeto — afirma Patrícia.

No programa de acolhimento atual, Lucas tem a possibilidade de ser adotado. Apesar de as chances não serem tão grandes — a idade avançada o afasta da maior parte da lista de pretendentes para a adoção —, a remota esperança de ter uma família marca uma mudança na trajetória de abandono e negligência de sua vida. Ele não está mais à própria sorte, mas ainda aguarda por um lar.

Fonte.Jornal Extra


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