Justiça de Transição para os povos indígenas é desafio do governo Lula

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(Foto: ABR)
 

"A justiça de transição é um mecanismo de associação da memória ao tradicional papel da justiça, que é de resolução de conflitos", afirma Alfredo Attié

Por Eduardo Reina, Conjur - Com a iminência da criação do Ministério dos Povos Originários do Brasil no governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil dá mais um passo no longo e duro caminho de implementação de um conjunto de ações e estudos para enfrentar e superar a violação dos direitos humanos e violência contra os povos indígenas durante a ditadura militar no país. Trata-se da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, que entre outras ações, deverá colocar em prática uma Justiça de Transição (JT) para os povos indígenas.

No Canadá, o trabalho desenvolvido por uma comissão da verdade dos povos indígenas locais comprovou e escancarou ao mundo as atrocidades promovidas pelo Estado e a Igreja Católica com os povos originários. Tanto que em 2021 o Papa Francisco pediu desculpas publicamente enquanto o governo canadense fechava acordos indenizatórios que somam US$ 31,5 bilhões.

Isso demonstra, de acordo com especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, que a Justiça de Transição aos povos indígenas no Brasil pode e deve caracterizar uma reação crítica ao silenciamento e esquecimento impostos pelo regime militar durante a ditadura (1964-1985) e também nos períodos anteriores, chegando até os dias de hoje. A JT ajudará a enfrentar os momentos de conflito interno, violação sistemática de direitos humanos e a violência contra os povos originário no Brasil e seus indivíduos.

"É muito importante essa Comissão Nacional Indígena da Verdade para reconhecer, finalmente, que o Brasil é um país multicultural. Nós precisamos enfrentar esse novo momento. Com certeza a CNIV não resolverá todos os problemas dos povos originários, mas trará luz para esse tema. Trará fôlego democrático e civilizatório para os brasileiros", analisa o procurador regional da República no Ministério Público Federal em São Paulo Marlon Weichert.

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014, apontou registros de mortes de 8.350 indivíduos indígenas durante o período da ditadura militar no Brasil. "A Justiça de Transição indígena deverá reconhecer o direito à terra e, principalmente, caracterizar os crimes ocorridos durante a ditadura contra esses povos. Isso porque os indígenas não pertenciam a nenhuma organização de esquerda, contrária ao regime militar. Mas eram considerados obstáculos aos ideários desenvolvimentistas e econômicos daqueles governos autoritários", explica o doutor em Direito e professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie, Flávio de Leão Bastos.

"A justiça de transição é um mecanismo de associação da memória ao tradicional papel da justiça, que é de resolução de conflitos. É uma forma de reconhecimento de que existe uma injustiça estrutural na sociedade, decorrente do fato de não terem sido resolvidos adequadamente conflitos no curso da história, que violências cometidas não foram reparadas e são reiteradas ao se naturalizarem. Os indígenas, verdadeiros donos do território brasileiro, são o principal objeto dessa violência, no curso de toda a história, muito embora essa violência se tenha agravado em determinados momentos em que o regime político e econômico brasileiro se tornou mais incisivo na dominação e na exploração, como no caso da ditadura de 1964/85", afirma Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.

A CNV fez várias recomendações com objetivos distintos em relação aos povos indígenas. Indicou necessidade de haver ações reparatórias, reformulações de políticas públicas na saúde e educação aos povos originários, necessidade de efetivação da demarcação das terras indígenas pelo Estado brasileiro, sua proteção ambiental e desintrusão das terras, entre outras medidas de reparação coletiva.


Além disso, a CNV sugeriu ainda que o Estado brasileiro apresente um pedido formal de desculpas e promova a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade.

"A criação e uma comissão nacional de verdade e reconciliação, com poderes para pesquisar os fatos e encaminhar reparações materiais e imateriais aos povos indígenas será o único modo de estabelecer a integração indígena com dignidade ao Estado brasileiro. Seria fundamental, também, o reconhecimento das línguas originárias, que passariam a ser oficiais do Brasil, ao lado do português brasileiro – mais de trezentos povos não podem continuar a ser tratados como periféricos, como se o seu falar não formasse a essência de nosso país, feito de múltiplos povos, de plurinacionalidade. Os povos originários não são primitivos, mas compõem o concerto das nações do mundo. Seu território e cultura fazem parte do que é o Brasil, a par de indicarem o caminho para a resolução do maior problema contemporâneo mundial, que é o da preservação e uso sustentável do meio ambiente. O Brasil é indígena mais do que europeu. A justiça de transição teria a função de iniciar esse processo de reconhecimento e transformação", observa Alfredo Attié.

Obstáculos

Os mecanismos que promovem a Justiça de Transição relativa à ditadura militar foram firmados a partir da Comissão de Anistia, criada pela lei nº 10.559/2002, e da Comissão Nacional da Verdade, lei nº 12.528/2011. Junto com essas duas instituições que contribuíram para a efetivação da JT, integram ainda estes mecanismos as comissões da verdade nos estados e nos municípios, além da contribuição do Ministério Público Federal e outras instituições privadas.

Mas há um complicado obstáculo jurídico para que seja concretizada uma JT com justiça consistente na punição dos perpetradores da ditadura militar para os povos indígenas e também para os demais brasileiros, segundo os especialistas ouvidos pela Conjur. Trata-se da vigência da Lei da Anistia, n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, ainda considerada válida pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive em relação aos torturadores do regime militar.

Contestada em muitas instâncias, a validação da Lei da Anistia pelo STF se deu no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de n° 153, ofertada pela Ordem dos Advogados do Brasil em 2010.

Nesse mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso "Gomes Lund e outros versus Brasil", referente à guerrilha do Araguaia, entendeu que a Lei de Anistia brasileira violava a Convenção Americana de Direitos Humanos ratificada pelo Estado brasileiro, especificamente os artigos 3º; 4º; 5º; 7º, inciso II. Também condenou o Brasil a investigar e punir os autores e responsáveis pelos delitos. Em 2014 foi proposta perante o STF uma nova medida (ADPF n° 320) e que ainda aguarda julgamento, novamente questionando a validade da lei de anistia brasileira.

Importante ressaltar que uma norma do Ministério da Justiça — a Portaria nº 2.523/2008 —, impõe que os pedidos de possíveis anistiados devem ser apresentados de forma individual, uma diretriz normativa, segundo especialistas ouvidos pela Conjur, que desconsidera a realidade das culturas originárias.

Uma das fases da Justiça de Transição inclui o ressarcimento às vítimas de regimes e períodos traumáticas e violentos.

Genocídio

Uma investigação da CNV, promovida sem se deter ou aprofundar em detalhes e em novas frentes de pesquisa, demonstrou que a ditadura militar provocou nos anos 1960, 1970 e parte de 1980, a morte de 8.350 indígenas de diversas etnias.

Foram retratadas violações de direitos humanos relacionadas a dez etnias: Cinta-Larga, Waimiri-Atroari, Tapayuna, Yanomami, Xetá, Panará, Parakanã, Xavante Marãiwatsédé, Araweté e Arara. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, há no território brasileiro 305 distintas nações indígenas, além de 114 povos originários que vivem em isolamento voluntário ou tiveram realizado contato recente.

"Historicamente os indígenas sempre foram invisibilizados no Brasil. Foram perseguidos pela ditadura militar porque eram obstáculo para a visão desenvolvimentista de governo, que tinha uma proposta colonizadora de exploração da terra, flora, fauna e mineração. E o que é vendido como desenvolvimentismo naturaliza o massacre dos povos indígenas", destaca Flávio Leão Bastos.

A CNV destacou em seu relatório final que o regime militar considerava que a existência de riquezas minerais em terras indígenas, como os minérios, era fator gerador de risco de influências estrangeiras sobre as culturas dos povos originário. Assim, foram consideradas inimigas do Brasil.

O professor Flávio Leão Bastos afirma que é necessário criar e desenvolver um processo transnacional para apurar a verdade e a memória desse período envolvendo os povos originários. "Mas também é preciso acabar com o preconceito. O progresso tecnológico não é privilégio de quem é branco. O indígena continua sendo indígena mesmo se utilizar celular, andar de carro. Mas, principalmente, é urgente acabar com essa naturalização sobre o assassinato de indígenas. Boa parte da população vê isso como normal, não tem choque quando se noticia, por exemplo, o assassinato de uma liderança indígena. Há uma aceitação social do extermínio de indígenas. Há aceitação da morte física e da morte cultural, que é o etnocídio", critica Bastos ao apontar que a situação dos povos indígenas no Brasil vem se deteriorando substancialmente desde 2019, período em que foram interrompidas as demarcações e homologações de terras, considerados ponto importante para a reparação coletiva e preservação das culturas desses povos.

Quando adequados, os processos de JT decorrem de políticas públicas definidas, que devem estar inseridas em processo de consultas prévias e envolvimento dos interessados, o que não vinha ocorrendo no Brasil.

Audiência pública

O Ministério Público Federal realizou no dia 27 de outubro, uma audiência pública com o objetivo de recolher informações para a implementação das recomendações da CNV e da Comissão Estadual da Verdade em Minas Gerais, voltadas à criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade.

Para o procurador da República Edmundo Antônio Dias e o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert, que presidiram a audiência pública, o objetivo principal foi reforçar a necessidade de criação da comissão, a partir da escuta dos povos indígenas. "Retomar a justiça de transição em nosso país é absolutamente urgente, diante de um passado autoritário que insiste em se fazer presente", afirmam.

"Os crimes contra esses povos originários não começaram na ditadura militar e nem terminaram em 1985, com o fim do período de repressão. Espero que o novo ministério (dos Povos Originários) encampe essa proposta de Justiça de Transição dos Povos Indígenas. Esses povos pagaram o preço do que não fizeram", explica Weichert.

Canadá

O Estado brasileiro nunca apresentou pedido oficial de desculpas às comunidades originárias e aos sobreviventes indígenas, muito menos desenvolveu qualquer projeto transicional com foco na repressão exercida sobre tais populações, tal como ocorreu no Canadá, com uma Comissão da Verdade que investigou as escolas residenciais indígenas.

Em 2015, a Comissão da Verdade e Reconciliação do Canadá mostrou que cerca de 150 mil crianças indígenas naquele país foram retiradas de suas famílias e enviadas a escolas católicas. Há estimativa de que pelo menos 6 mil indivíduos tenham morrido enquanto estiveram internados à força nessas instituições.

No ano de 2021, tais denúncias de "genocídio cultural", túmulos dessas crianças mortas foram encontrados na região onde funcionava a Escola Residencial Kamloops, na província de Colúmbia Britânica. Essas instituições de ensino recebiam financiamento do governo do Canadá e a maioria era administrada pela Igreja Católica.

À época, a comissão canadense recomendou que o Papa, líder da Igreja Católica, pedisse desculpas oficiais às comunidades indígenas do país. E depois do encontro dos túmulos, o Vaticano resolveu cumprir com a recomendação.

No dia 25 de julho deste ano, o papa Francisco pediu desculpas aos indígenas canadenses por abusos cometidos nas escolas católicas por mais de 100 anos. "Peço perdão, em particular, pela maneira como integrantes da Igreja e de comunidades religiosas colaboraram com o projeto de destruição cultural promovido pelos governos que resultou nas escolas residenciais", disse, em visita ao Canadá.

Duas semanas antes, o governo do Canadá havia anunciado acordos de indenização junto as crianças indígenas retiradas de suas famílias e colocadas nas escolas. Os dois acordos somam cerca de US$ 31,5 bilhões. De acordo com o que a ministra dos Serviços Indígenas, Patty Hajdu, disse à imprensa canadense, tais acordos reconhecem os danos e a dor causados pela discriminação aos sobreviventes e suas famílias. O Estado também reconheceu os danos sofridos coletivamente por essa população.

Ministério próprio

Aqui no Brasil a equipe de transição do governo eleito criou 31 grupos temáticos, sendo que um deles é o dos "Povos Originários", possível embrião de um Ministério dos Povos Originário Brasileiros. Lideranças indígenas cotadas para assumir a pasta dão como certa a concretização da proposta, entre elas a advogada Sonia Guajajara, primeira deputada federal indígena eleita por São Paulo e coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Outros nomes cotados, com protagonismo internacional, são Joênia Wapichana, Beto Marubo e Célia Xakribá.

Fonte.brasil247.com


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