Mortos em casa e cadáveres nas ruas: o colapso funerário
causado pelo coronavírus no Equador
Matías Zibell - Da BBC News Mundo no Equador
BBC News Brasilhá 5 horas
Equador é um dos países da região com mais casos confirmados
e mortes por covid-19
Equador é um dos países da região com mais casos confirmados
e mortes por covid-19
Ao redor do mundo, milhares de imagens de cidades vazias e
hospitais em colapso por conta da pandemia do novo coronavírus tomam conta dos
noticiários.
Nas últimas semanas, imagens chocantes também são vistas na
cidade equatoriana de Guayaquil. Dali, circulam diversos vídeos e testemunhos
sobre pessoas morrendo nas ruas e corpos esperando dias para serem coletados em
casa.
A província de Guayas, onde Guayaquil está localizada,
registrou, ao menos segundo os dados oficiais até 1º de abril, mais vítimas da
covid-19 do que países latino-americanos inteiros: 60 mortos e 1.937 infectados
(1.301 apenas na capital da província, Guayaquil). No mesmo período, na
Colômbia, por exemplo, são 16 mortos, e na Argentina são 27.
O colapso do sistema funerário, como resultado dessa crise, é
grande e o presidente do Equador, Lenín Moreno, teve que formar uma
força-tarefa conjunta para enterrar todos os mortos.
Os depoimentos de parentes e vizinhos das vítimas, dados à
BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, são de horror.
"Meu tio morreu em 28 de março e ninguém vem nos ajudar.
Vivemos no noroeste da cidade. Os hospitais disseram que não tinham macas e ele
morreu em casa. Ligamos para o 911 (serviço de emergência) e nos pediram
paciência. O corpo ainda está na cama, onde ele morreu, porque ninguém pode
tocá-lo", diz Jésica Castañeda, sobrinha de Segundo Castañeda.
Cidadãos de Guayaquil agora veem corpos pelas calçadas
Outra jovem de Guayaquil que mora no sudeste da cidade — ela
pediu para não ter o nome divulgado — relatou que seu pai morreu em seus braços
e passou 24 horas em casa.
"Eles nunca o testaram para o coronavírus, apenas nos
disseram que poderiam agendar uma consulta e falaram para tomar paracetamol.
Tivemos que remover o corpo com recursos particulares, porque não recebemos
respostas do Estado. Nos sentimos impotentes ao ver meu pai assim e ter que
sair para pedir ajuda", disse a jovem.
Mas essa situação não afeta apenas os mortos pelo vírus.
Wendy Noboa, que vive no norte de Guayaquil, perto de um terminal de ônibus,
conta a história de seu vizinho Gorky Pazmiño, que morreu no domingo, 29 de
março.
"Ele caiu e morreu ao bater a cabeça. Liguei para o 911
e eles nunca vieram. Ele morava com o pai, com mais de 96 anos, por isso minha
angústia. Ele ficou no apartamento por um dia inteiro, até que os membros da
família chegassem com o caixão para enterrá-lo. Mas eles não podiam enterrá-lo,
porque não havia médico para assinar a certidão de óbito", relata.
Há tantos casos assim que a jornalista Blanca Moncada, do
jornal Expresso, fez uma série de postagens no Twitter solicitando informações
de parentes e vizinhos de pessoas que estão nessa situação.
"Tomei essa decisão por causa do grito desesperado de
muitos cidadãos que precisam esperar 72 horas ou mais pelas autoridades para
coletar os corpos que permanecem nas casas. Busco quantificar a magnitude dessa
tragédia porque, em questão de números, Guayaquil é agora uma grande nuvem
cinza ".
https://www.youtube.com/watch?v=OkijKj0TIpM&feature=emb_title
Confronto político
O comandante da Marinha Nacional, Darwin Jarrín, que assumiu
a coordenação militar e policial da Província de Guayas em 30 de março, disse à
BBC News Mundo que até quinta-feira, 2 de abril, todos os mortos em Guayaquil
estarão enterrados.
"O Ministério da Saúde entrega a certidão de óbito aos
hospitais, a Polícia e a CTE (Comissão de Trânsito do Equador) transferem os
corpos para os dois cemitérios — Parques de La Paz em Aurora e o Panteão
Metropolitano na estrada para o litoral — e as forças armadas os enterram",
disse Jarrín.
Mas o que aconteceu na última semana de março na cidade —
onde mais de 300 corpos foram recolhidos em diferentes casas pela polícia
equatoriana, segundo o jornal El Comercio — pode ter sérias consequências.
Presidente Lenín Moreno criou força-tarefa para lidar com o
impacto da pandemia
Presidente Lenín Moreno criou força-tarefa para lidar com o
impacto da pandemia
Para começar, a crise gerou conflitos entre a prefeita de
Guayaquil e o governo central. Cyntia Viteri, que está em quarentena por ter
sido infectada com o coronavírus, reclamou, em 27 de março, da conduta das
autoridades nacionais e relatou as deficiências do sistema público do país.
"Eles não tiram os mortos de suas casas. Eles os deixam
nas calçadas, caem na frente de hospitais. Ninguém quer buscá-los. E os nossos
pacientes? Famílias perambulam por toda a cidade, batendo nas portas para um
hospital público recebê-los, mas não há mais leitos".
Além das mortes nas casas, a cidade teve que enfrentar o
pesadelo dos mortos em suas ruas. Jésica Zambrano, jornalista do jornal El
Telégrafo, contou à BBC News Mundo sobre sua experiência no centro de
Guayaquil.
"Meu companheiro saiu para fazer compras e encontrou uma
pessoa morta nas ruas Pedro Carbo e Urdaneta. Anteriormente, fomos informados
de que havia outros mortos a poucos metros de distância. Aqui estamos
acostumados a ver mendigos dormindo nas ruas, mas como resultado dessa crise,
as pessoas morrem no centro da cidade."
'Golpe nos costumes'
Em 28 de março, um dia após as declarações da prefeita, o
jornal El Universo relatou os planos do governo municipal para enterrar os
mortos em uma vala comum, mas a ideia não prosperou.
"Me parece terrível que a ideia de uma vala comum nesta
cidade tenha sido lançada", declara o sociólogo Héctor Chiriboga, de
Guayaquil, à BBC News Mundo.
"Esta é uma cidade onde a classe média, ou média baixa,
demorava até dois dias para fazer os velórios, porque tinha que esperar a
chegada do parente que vivia na Europa, pois muitos moradores migraram no
início dos anos 2000. Aqui os cadáveres eram vestidos e, até pouco tempo, a
Igreja Católica via com maus olhos a cremação", explica o estudioso.
"Isso (enterrar em vala comum) é um golpe para os
costumes dos setores populares, para o ritual da morte e do enterro. O homem
que ganha seu pão todos os dias, que tem uma tendência cristã ou católica, é um
homem que se desfaz quando vê que o rito não será cumprido", acrescenta
Chiriboga.
Ruas da capital, Quito, estão quase vazias em meio à pandemia
Ruas da capital, Quito, estão quase vazias em meio à pandemia
Jorge Wated, responsável pela força-tarefa designada pelo
presidente Moreno para o enterro dos cadáveres, diz à BBC News Mundo que ele
não teria aceitado essa missão se o presidente o pedisse para se encarregar de
uma vala comum.
"Presido esta força-tarefa para levar os mortos das
casas e hospitais de Guayaquil, e para que aqueles que não têm serviços
funerários possam ter um enterro cristão, de uma só pessoa, em um cemitério na
cidade".
Mas Wated relata que os parentes das vítimas não poderão
comparecer ao funeral.
O pior cenário
Bombeiros e polícia passaram a ajudar nos controles, medindo
temperatura de cidadãos
Bombeiros e polícia passaram a ajudar nos controles, medindo
temperatura de cidadãos
"Sempre houve pessoas que morrem em casa. O normal era
que um médico determinasse a causa da morte e a funerária chegasse. Mas agora
há um pânico geral e acredita-se que todo mundo que morre em Guayaquil tenha
coronavírus. Portanto, as funerárias não querem assumir o controle ",
explica Grace Navarrete, médica de saúde pública que integra a Sociedade
Equatoriana de Saúde Pública.
O comportamento das casas funerárias durante a crise foi
investigado pela jornalista Susana Morán, do site de notícias do Plano V, no
artigo "Morrendo duas vezes em Guayaquil".
Morán entrevistou a dona de uma funerária que fechou seus
negócios por medo de contágio. "Eu já sou velha, para ganhar alguns
centavos não vou pôr em risco minha família", disse a senhora à jornalista.
Esse medo também é replicado entre os membros da família, diz
Navarrete. "O mesmo acontece nas casas. Alguém morre e ninguém toca o
corpo, pois é uma cidade onde o calor faz com que o nível de decomposição dos
cadáveres seja mais rápido que em outras partes do país. Ouvi falar de um caso
em que a pessoa faleceu em um quarto e os parentes levaram o corpo do colchão
para a calçada", relata a médica.
Para Jorge Wated, um conjunto de fatores traz à tona o pior
cenário para a região. "As casas funerárias estão em colapso, elas sequer
têm pessoal; os cemitérios não têm capacidade para receber tantos mortos a essa
velocidade; as pessoas não podem deixar suas casas para realizar os
procedimentos para enterrar seus mortos; o número de mortes está aumentando entre
os diagnosticados, além das suspeitas de terem morrido por coronavírus e que
não foram testadas. Isso cria um cenário muito difícil."
Saúde pública
Sistema funerário entrou em colapso no Equador diante do
coronavírus
Sistema funerário entrou em colapso no Equador diante do
coronavírus
O médico Ernesto Torres acredita que a tragédia deve ser
entendida como uma questão de saúde pública, pois, em suas palavras, isso
"vai além do campo da medicina, porque tem a ver com as políticas do
Estado e o real interesse dos governos na saúde da sua população".
Para este especialista em saúde pública, os hospitais
receberam muita importância nesta crise, mas não trabalharam no mesmo nível
para atender toda a comunidade.
"Se trabalhássemos intensivamente nesse nível (desde os
primeiros casos), poderíamos impedir que muitas pessoas congestionassem
hospitais. Agora, os hospitais tentam apagar incêndios com baldes de
água", diz.
Nessas comunidades, especialmente nas mais periféricas, está
ocorrendo "uma crise humanitária real e profunda", nas palavras de
Paúl Murillo, chefe da área de advocacia comunitária do Comitê Permanente de
Direitos Humanos.
"Está certo haver isolamento nos domicílios. Mas nunca
pensaram em planos que garantissem, ao menos, segurança alimentar nos bairros
periféricos e marginais", afirma.
Adriana Rodríguez, professora de direito na Universidade
Andina e especialista em direitos humanos, acha que não é de surpreender que os
problemas sociais fiquem evidentes durante esse período em uma cidade com alta
desigualdade social.
"Guayaquil é uma cidade que tem aproximadamente 17% de
sua população em situação de pobreza e extrema pobreza. O que acontece agora
com os cadáveres nos faz pensar sobre quais corpos são importantes e quais não
são. Os cortes na saúde pública nos dizem que existem corpos que não
importam", afirma.
Crise do coronavírus já está virando uma emergência
humanitária nas grandes cidades equatorianas
Crise do coronavírus já está virando uma emergência
humanitária nas grandes cidades equatorianas
No entanto, para o engenheiro Jorge Wated, o que acontece
hoje em Guayaquil pode ocorrer em qualquer lugar do continente.
"Vejo o que acontece no resto da América Latina. Por
exemplo, o que acontece hoje na Argentina foi o que aconteceu aqui há três
semanas. As coisas vão ser complicadas, dependendo de cada país. Estamos
tentando agir o mais rápido que podemos", declara Wated.
Nas últimas horas, a revista Vistazo informou que, na noite
de 30 de março, circulou um vídeo com um grupo de pessoas no sudoeste de
Guayaquil, queimando pneus para exigir a remoção de um cadáver.
"Até os moradores teriam ameaçado queimar o corpo do falecido,
em protesto", encerra a notícia.
Fonte. Yahoo.com.br
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