‘Há uma censura moral, o País está sendo conduzido por uma visão religiosa’, diz Fernanda Montenegro
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Reprodução/Instagram
Se
pudesse resumir o conteúdo de sua autobiografia Prólogo, Ato, Epílogo em um
punhado de frases, Fernanda Montenegro diria que se trata de uma “viagem com
muitos colegas, com muitas crises políticas, com muitas linguagens cênicas, com
muita coragem de sobrevivência e resistência”, como já definiu.
Na
conversa com o Estado, a atriz detalhou o olhar que tem sobre a situação brasileira.
“Há uma mentalidade de censura moral. Estamos nos transformando em um País
conduzido por uma visão religiosa e, quem não apoiar, não terá nada. E a
cultura tornou-se o primeiro item a ser revisto e, se possível, exterminado. A
arte é demoníaca, e nós, artistas, somos o instrumento do demônio.”
Fernanda
aponta, entre as causas dessa situação, a estrutura do sistema político
brasileiro que prevê reeleição. “O período militar durou 20 anos e foi marcado
por mudanças no comando, mas o sistema era o mesmo, o que se parecia com uma
reeleição”, comenta. “Agora, com essa possibilidade prevista em lei, cada
político que ganha uma eleição vê uma chance de manter seu partido no poder por
20 anos, o mesmo período da ditadura militar. Herdamos uma deformação política.”
Mulher
antenada com as evoluções sociais, Fernanda narra, no livro, como descobriu o
feminismo, apoiado principalmente na leitura dos textos da francesa Simone de
Beauvoir (1908-1986), que teve uma influência significativa tanto no
existencialismo do feminino como na teoria desse gênero. A ponto de,
atualmente, defender com veemência movimentos como o #MeToo, nascido em 2017
com a missão de denunciar o assédio e as agressões sexuais sofridas
especialmente por atrizes.
“É
um conceito abstrato, mas com base em fatos reais”, defende. “A conclusão é que
o macho é necessário, mas o machão é nojento e criminoso.”
A
autobiografia é repleta também de histórias curiosas. Como o momento mais
marcante da carreira de Fernanda Montenegro: a consagração conquistada pelo
filme Central do Brasil, de Walter Salles. O longa ganhou o prêmio máximo do
Festival de Berlim de 1998, o Urso de Ouro. Empolgado, o júri daquele ano
passou por cima do regulamento (que não permitia mais de uma honraria para uma
mesma produção) e concedeu o Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda.
No
jantar festivo da premiação de Berlim, de tão emocionada, ela trincou um molar
por causa da tensão tão grande. Foi parar num pronto-socorro dentário.
“Deram-me um remédio poderoso que me permitiu esperar até chegar ao Rio”,
relembra.
Central
do Brasil também a levou à cerimônia do Oscar, onde disputou o prêmio de melhor
atriz. Perdeu para Gwyneth Paltrow e sua atuação nada surpreendente em
Shakespeare Apaixonado. Sua atuação, no entanto, chamou atenção de David
Letterman, então um dos mais famosos apresentadores da televisão americana.
“Muitas pessoas dariam um braço para serem entrevistas por ele, mas eu não
queria, pois não teríamos o que conversar – David nem tinha visto o filme”,
comenta Fernanda, no livro. Mesmo assim, seu bom humor (em determinado momento,
apresentou-se como a Velha Garota de Ipanema) conquistou o apresentador.
O
cinema, aliás, foi um meio no qual Fernanda Montenegro exercitou seu amor ao
ofício por ter trabalhado em muitas produções de baixíssimo orçamento. Como em
Eles Não Usam Black-Tie, dirigido por Leon Hirszman em 1981. Baseado em uma
peça de Gianfrancesco Guarnieri, que dividiu o protagonismo com Fernanda, o
longa mostra os efeitos do movimento grevista em uma família operária.
No
papel de Romana, a atriz ofereceu uma das mais perfeitas performances do cinema
brasileiro, com uma interpretação contida, baseada principalmente no tom de voz
e no olhar. E a cena final foi um dos motivos que convenceram os jurados do
Festival de Veneza de 1981 a conferir o prêmio máximo, o Leão de Ouro.
Fernanda
assim descreve a rodagem daquele take: “Na última cena do filme, naquela
cozinha paupérrima, só estavam (o diretor de fotografia) Lauro Escorel,
Guarnieri, eu e Leon que, emocionado, nos falou que a cena seria, para ele, um
modesto tributo ao (cineasta russo Sergei) Eisenstein. Diante dessa oferenda,
nos baixou uma comoção, diria, religiosa.”
Não
houve ensaio entre ela e Guarnieri. “Só nos olhamos e começamos ganhando as
pausas, os olhares, os toques de mão, nossos dedos salvando os bons grãos, os
não podres – os grãos que, um dia, vão nos tirar da injustiça social do País”,
escreveu.
O
ofício sempre esteve em primeiro lugar, postura que lhe ditou os caminhos da
arte, especialmente quando participou da fundação da Companhia dos Sete, ao
lado de Sérgio Britto, Ítalo Rossi, Gianni Ratto, Luciana Petruccelli, Alfredo
Souto de Almeida e Fernando Torres, seu companheiro, com quem viveu por 60 anos
até sua morte, em 2008.
O
livro traz a mensagem de uma missão bem executada, ainda que incompleta. Na
última frase, Fernanda revela sua sensação de dever cumprido: “Tudo vai se
harmonizando para a despedida inevitável. Inarredável. O que lamento é a vida
durar apenas o tempo de um suspiro. Mas acordo e canto”.
PRÓLOGO,
ATO, EPÍLOGO
Autora:
Fernanda Montenegro
Editora:
Companhia das Letras (392 págs.,
R$
49,90 impresso, R$ 29,90 e-book)
Fonte. https://istoe.com.br/
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