Destruir terreiros de religiões de matriz africana é a nova “guerra santa” no Brasil
Denúncias de discriminação por motivo religioso cresceram 4960% em cinco anos.
Um dos alvos preferenciais são os
terreiros da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro

Imprimir
Imagem de divindade da Umbanda
lacerada após ataque. AGÊNCIA PÚBLICA
Mãe
Merinha foi bem rápida, amarrou um pano branco na roupa e colocou alguns colares
fios-de-conta coloridos no pescoço. ‘‘O mais triste disso tudo é saber que eles não param’’, disse,
enquanto prendia um tecido também branco na cabeça. Estava pronta, com sua
vestimenta de mãe-de-santo. Sinalizou que poderia começar a
entrevista e se apresentou: ‘‘Sou Mãe Merinha de Oxum, fui iniciada no
Candomblé há 36 anos, sou filha de Mima de Oxossi, do Ilê Axé Obá Ketu’’. Há um
ano e meio, Rosimere Lucia dos Santos abriu um terreiro de Candomblé em
Belford Roxo, município do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense,
onde também começou um trabalho social com crianças da região. No dia 27 de
setembro,quarta-feira, completou 51 anos e, naquele
mesmo dia, seu terreiro foi invadido e incendiado.
Os vizinhos, quando perceberam as chamas, chamaram o irmão de Mãe Merinha, que mora perto, para ajudar a apagar o fogo. O incêndio foi controlado a tempo de não afetar a edificação principal, mas, no dia seguinte, Mãe Merinha percebeu que colocaram fogo bem na casa do meio, onde ficavam os donativos, roupas de santo e os orixás. Os criminosos furtaram também uma TV, celular e rádio. O Registro de Ocorrência foi feito uma semana depois, já na segunda tentativa: ‘‘A delegacia estava muito cheia, fiquei umas três horas lá, tava muito enfraquecida, chocada com tudo, fui buscando força, aí retornei na quinta-feira’’.
Queimaram
também livros sobre religiões de matriz africana e as fotos da história da
família no Candomblé. ‘‘O que mais me entristece é o material de trabalho e as
fotografias. Eu tenho toda uma história de santo, de quando era dirigido por
minha mãe’’. Mãe Merinha é descendente de
negros e indígenas, e a
religião veio pela avó materna que foi para o Rio de Janeiro fugindo
do marido violento, no Espírito Santo. Lavadeira, a avó conseguiu comprar um
terreno em Belford Roxo e destinou parte para o orixá da filha. ‘Tinha até
algumas fotos da minha mãe com trouxa na cabeça quando elas chegaram no
município de Belford Roxo’’, relembra. ‘‘Levei tudo que eu tinha no decorrer
desses anos para esse local, é toda uma história de vida do sagrado’’.
Mãe Merinha
é uma das vítimas mais recentes da violência contra adeptos das religiões de matriz africana no Estado do Rio
de Janeiro. De acordo com os dados do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (Ceplir),
das 52 denúncias de intolerância religiosa ao Ceplir — de dezembro de 2016 a agosto de 2017 —, 34 foram de pessoas do Candomblé, Umbanda e
outras denominações de religiões de matriz africana no Estado do Rio.

Mãe Merinha segura uma das fotos que
sobrou do incêndio DADO GADIERI
E PILAR OLIVARES HILAEA MEDIA
Em
cinco anos, as denúncias de discriminação por
motivo religioso no Brasil cresceram 4960%. Foram de 15, em 2011, para 759, em
2016, de acordo com os dados do Disque 100, da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). Em 2016, 69 eram candomblecistas (9,09%), 74 eram umbandistas
(9,75%) e 33 são descritas como “religião de matriz africana” (4,35%),
totalizando 23,19%.
Segundo relatório da Pew Foundation, o país deixou de ser um dos países mais
populosos com menor taxa de Hostilidade Social por motivações religiosas, em
2007, para um dos países com alta taxa em 2014, passando da 2ª posição
para a 9ª neste período.
Em
agosto e setembro deste ano, uma nova onda de ataques a terreiros de Candomblé
e Umbanda na Baixada Fluminense comprovou que os crimes de ódio por motivo
religioso estão crescendo no Estado que tem, pela primeira vez, um bispo
evangélico governando a sua capital — em janeiro, Marcelo Crivella(PRB),
bispo de Igreja Universal do
Reino de Deus, assumiu a prefeitura do Rio de Janeiro.
Em
resposta à violência, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDHMI)
lançou o Disque Combate ao Preconceito para facilitar as denúncias.
Nos
meses de agosto e outubro foram feitas 43 denúncias: uma de um espírita
kardecista, uma de um evangélico, dois islâmicos e 39 umbandistas e
candomblecistas, representando 90% do total. Foram seis tipos de violações
identificadas, entre eles invasão/atentado a instituições religiosas (11),
discriminação/difamação (10), agressão física (6), incitação ao ódio (6),
agressão verbal (6), ameaça (4).
Inquisição do tráfico na Baixada
Dentre
as denúncias contra religiosos de matriz africana, 12 ocorreram na Baixada
Fluminense. A região reúne 13 municípios do Rio de
Janeiro e abriga ao menos 274 terreiros, do total de 847
no Estado, de acordo com a pesquisaMapeamento das Casas de Religiões
de Matrizes Africanas, realizada pela PUC-Rio com o apoio da Secretaria Nacional de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), entre 2008 e 2011.
A
SEDHMI recebeu quatro denúncias de ataques a terreiros realizados por
traficantes de agosto a outubro, três delas de ocorrências na Baixada
Fluminense — duas em Nova Iguaçu e uma em Itaguaí. Segundo a secretaria,
as quatro vítimas informaram que, por ordem da facção criminosa, é proibida a
prática de religiões de matriz africana na área dominada pela facção. Todas as
pessoas que denunciam casos de intolerância
religiosa são orientadas a fazer o registro na delegacia
da região, mas algumas vítimas não o fazem por medo.

Mãe Vivian
mudou o terreiro para uma casa mais isolada em Sepetiba. DADO GADIERI E PILAR OLIVARESHILAEA MEDIA
Em
setembro, o terreiro da mãe de santo Carmen de Oxum foi atacado em Nova Iguaçu. O traficante, que ainda registrou o crime com a câmera de um
celular, dá ordens para destruir os objetos sacralizados: ‘‘quebra tudo, apaga
as velas, pelo sangue de Jesus tem poder… Todo mal tem que ser desfeito em nome
de Jesus’’.Segundo o diretor-geral da Polícia da Baixada Fluminense, Sérgio
Caldas, o caso está sendo investigado pela 58ª DP e já foram identificados, como
executores, dois traficantes do Terceiro Comando Puro, facção criminosa
conhecida por ameaçar candomblecistas e umbandistas. ‘‘Essa pessoa veio de uma
outra comunidade para pressionar os terreiros de candomblé’’, disse Caldas à Pública, acrescentando que as condições “não são
favoráveis” para a investigação. “Quando ocorre em comunidade conflagrada, a
vítima fica com medo de se expor’’.
Os
indiciados deste caso serão penalizados pela Lei 7.716, de 1989, conhecida como
“Lei Caó’’, que determina a punição para os crimes resultantes de discriminação
ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, como
crime inafiançável e imprescritível. A pena é de dois a cinco anos de
reclusão.
O
babalaô Ivanir dos Santos, fundador da Caminhada em Defesa da
Liberdade Religiosa e porta-voz da Comissão de Combate à Intolerância
Religiosa, diz que as primeiras ações de destruição de terreiros por traficantes aconteceram na década de 1990, no Morro do
Urubu, em Pilares, Zona Norte do Rio. Depois, outros casos ocorreram no Morro
do Dendê (localizado na Ilha do Governador), no Lins de Vasconcelos e na Cidade
Alta. “É um fenômeno compreensível. Toda religião que cresce vai influenciar
algumas esferas sociais’’, diz. Ivanir acredita que a presença de igrejas evangélicas nos
presídios do Rio é um fator de influência para o surgimento do que chama de
“tráfico evangelizado’’. ‘‘O cara tá lá preso, vira evangélico e vai sair por
bom comportamento, isso diminui a pena do sujeito… Quando sai da prisão, nem
todo mundo muda de vida”, diz.
As
igrejas evangélicas devem se tornar ainda mais presentes nos presídios
fluminenses. Em fevereiro, a Igreja Universal do Reino de
Deus firmou acordo com o Governo do Estado para a construção de templos em
unidades penitenciárias, custeados pela instituição religiosa. O acordo permite que a Universal construa ou reforme templos
ecumênicos nas 51 unidades prisionais do Estado, dependendo de autorização do diretor da unidade. Até o
momento, graças ao convênio, 15 templos foram inaugurados ou reformados, nos
Complexos de Gericinó, Campos, Resende e Água Santa.
A
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Sistema Prisional e Direitos
Humanos do Rio de Janeiro visitou as unidades prisionais
onde foram construídos os templos religiosos para apurar a validade do acordo.
Segundo opromotor de Justiça Murilo Nunes de Bustamante, os espaços não deveriam ser vinculados à religião específica, mas
o padrão arquitetônico encontrado por eles se assemelha ao usado pela Igreja
Universal. ‘‘Apesar da previsão de ser ecumênico de ter o livre uso pra
qualquer um, os próprios internos só admitiriam que algumas religiões
realizarem seus cultos no local’’. A investigação daPromotoria ainda não foi concluída. “Os indicativos são no sentido da
identidade arquitetônica dos espaços, o que será debatido com as igrejas
atuantes no sistema prisional’’, esclareceu.
Em
resposta à Pública, a Igreja Universal do Reino de Deus informou
que o programa social Universal nos Presídios (UNP) atende 80% da população
carcerária do Brasil, aproximadamente 500.000 pessoas, do total de 622.000
detentos, segundo o Infopen de 2014,‘‘oferecendo cursos e apoio aos detentos e seus familiares,
realizando um trabalho de ressocialização que é reconhecido pelas autoridades
em todos os estados da Federação, inclusive no estado do Rio de Janeiro’’.

Oito homicídios por intolerância
religiosa
Os
dados disponíveis no Relatório de Intolerância e Violência
Religiosa, da Secretaria Especial de Direitos Humanos,
detalha o que ativistas pela liberdade religiosa chamam de ‘‘Guerra Santa’’. O
Relatório mostra que, entre 2011 e 2015, 27% das denúncias feitas nas
ouvidorias do país eram de pessoas da religião de matrizes africana, 16% de
evangélicos, 8% de católicos e a 7% de espíritas. Em relação à religião dos
agressores, informada pela vítima, as informações indicam que 17% eram
evangélicos. Católicos aparecem
em segunda posição, porém muito distantes, com 3%, seguidos de Testemunhas de
Jeová (1%) e Espíritas (1%), Matriz Africana (1%). Em 73% dos casos não foram
registradas informações sobre a religião do agressor.
Também
foram identificados no relatório oito homicídios por motivo religioso, segundo
investigações da polícia civil ou do Ministério Público. Quatro mortes
envolveram lideranças de candomblé, em Londrina (PR) e em Manaus (AM), e quatro
foram mortes de uma mesma família de evangélicos, em Itapecerica da Serra (SP).
Todos os assassinatos foram realizados por uso de facas, e os agressores e
vítimas eram próximos.
O
professor Jayro de Jesus, coordenador da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada,
explica que os neopentecostais entendem que a fé traz saúde, bem estar e
prosperidade material. Já as doenças, desemprego e pobreza resultam do ‘‘mal’’
e de uma vida em pecado. ‘‘É o mal que prejudica a vida alheia. E o mal é
tipificado nas religiões afro’’, explica. ‘‘Os neopentecostais, hoje, contam
com a ajuda da própria população que encontra justificativa para acabar com o
mal que é o seu vizinho, o seu entorno.’’
Jayro,
figura histórica na luta contra a violência às religiões de matriz africana,
coordenou nos anos 80 o Projeto Tradição dos Orixás,
que visitava os terreiros na Baixada para ouvir relatos de
intolerância, e encaminhava para as delegacias. ‘‘Eram 20 jovens que saiam por toda
a Baixada. Levantamos 3.000 terreiros com queixa de invasão, xingamentos,
apedrejamentos, surras de bíblia’’, relembra. “A perseguição vinha
essencialmente da Igreja Universal’’, diz.
Os
relatos ao grupo foram reunidos no Dossiê ‘‘A Guerra Santa Fabricada’’,
primeiro entregue ao Governo Federal sobre o assunto, protocolado na
Procuradoria-Geral da República em 1989. Mas nada foi feito, garante Uilian
Portella, advogado do grupo. ‘‘O dossiê denunciou reiteradas atitudes
agressivas das igrejas evangélicas neopentecostais, notadamente a denominada
Universal do Reino de Deus… Os adeptos dos cultos de Matriz Africana vinham
sendo apedrejados, espancados e surrados com Bíblias ‘para expulsar capetas’”.
Em
2015, as emissoras de televisão Rede Record e
a Rede Mulher (comprada pela Record), de Edir Macedo, fundador e líder da
Igreja Universal, foram condenadas pela Justiça Federal a exibir quatro programas de
televisão como direito de resposta às religiões de matriz africana por ofensas
contra elas no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão de Descarrego”.
Procurada
pela reportagem, a Universal afirmou que a acusação de que seus membros perseguiam
outros cultos na década de 80 é “mentirosa”. “A Igreja Universal do Reino de
Deus defende, de modo intransigente, a liberdade de pensamento, de crença e de
culto, conforme assegurado por nossa Constituição Federal”. A Igreja diz que
prega o contrário. “Orientamos nossos adeptos a respeitarem as convicções das
outras pessoas, pois são exatamente os bispos, pastores e milhões de
simpatizantes da Universal as maiores vítimas do preconceito religioso no
Brasil”, afirmou, por nota.
‘‘É como se tivessem arrancado um
filho”
Às
22h do dia 4 de outubro deste ano, Mãe Vivian de Souza estava em casa, em Nova
Sepetiba, quando recebeu a ligação de um vizinho do seu terreiro, em
Seropédica, na Baixada. Por telefone, ele disse que entraram na casa dela e,
até aquela hora, muitas imagens e objetos já deveriam estar quebrados. O
vizinho repassou a ameaça de que se ela não retirasse os
pertences o mais rápido possível, iriam destruir tudo. Mãe Vivian entrou em desespero. Sua casa fica a uma hora de
distância de carro.

Mãe Vivian
na porta da casa em Sepetiba com parte da estrutura da casa de Seropédica em
mãos. DADO GADIERI E PILAR OLIVARES HILAEA MEDIA
Há
quase dois anos, Mãe Vivian se mudou com a família para Nova Sepetiba e
transformou a sua casa em Seropédica em Casa de Candomblé. Não visitava o
terreiro com regularidade, mas podia ficar uma ali uma semana inteira ou apenas
um fim de semana, ‘‘o tempo que a obrigação religiosa exigir’’. Quando chegou à
casa, próximo da meia-noite, viu o portão arrombado, o Orixá Bará no chão, os
Exus quebrados. Conseguiu um caminhão para tirar o que sobrou. No dia seguinte,
alugou uma casa em Sepetiba para começar a construção de um novo espaço
dedicado aos orixás. Para o anterior, não quer voltar mais: ‘‘É como se
tivessem arrancado um filho meu’’. Além dos orixás, destruíram a própria
estrutura da casa e outros objetos, ‘‘coisa que pra gente tem muito valor. Um
búzio, uma moeda pra gente vale, pra outras pessoas talvez não, mas é muito
ruim’’, contou.
A
casa nova é menor; objetos simbólicos foram armazenados em um quarto, e a outra
parte em uma sala, com os atabaques e colchões que conseguiu levar. ‘‘Não dá
pra entender tanto ódio. Parece que eu tô no tempo dos meus antepassados, da
gente ter que se esconder na mata, como meus avós fizeram pra continuar
cultuando a nossa religião. Eu tô acuada, eles estão nos acuando cada vez
mais.’’
Mãe
Vivian foi até a Delegacia em Sepetiba para fazer a denúncia, mas foi orientada
a fazer o Registro de Ocorrência online ou ir à delegacia de Seropédica. “A
forma que eles agem é como se você fosse culpado por aquilo que tá acontecendo,
‘porque a senhora não tava lá na hora?’. Não sou eu que tenho que saber quem
foi.’’ Para ela, não há interesse da polícia em realizar uma investigação de
fato.
Com a crise, o fim do Centro de
Promoção da Liberdade Religiosa
Mãe
Vivian buscou ajuda no Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos
(Ceplir) que, de 2012 até este ano, atendeu às vítimas de
intolerância no Estado Rio com acompanhamento psicológico, jurídico e
assistência social.
Porém,
Flávia Pinto, que era diretora da instituição até esta semana, explicou àPública que o Centro deixou de receber recursos do Governo do Estado em
2016.‘‘Com a crise do Estado, o Ceplir ficou sucateado. Conseguimos recurso com
a Fundação Cultural
Palmares [do Governo Federal] e colocamos o Ceplir pra
funcionar por mais um ano na UFF [Universidade Federal Fluminense], mas esse
recurso acabou’’, informou. ‘Estamos conscientizando as
pessoas de que intolerância religiosa é crime. A política de liberdade religiosa
ainda é embrionária no país. As pessoas ainda não têm o entendimento de que ser
discriminado pela sua religiosidade é crime’’.
O
secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Alexandre Nunes, rebate as
críticas. Segundo ele, a Secretaria estadual de Proteção e Apoio à Mulher e ao
Idoso passou a ser Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para
Mulheres e Idosos (SEDHMI) e, com a mudança, a secretaria vai incorporar os
técnicos do Ceplir já em novembro ‘‘pra que seja uma estrutura permanente,
consolidada e que não dependa de recurso de terceiros’’. Mesmo assim, a Ceplir
não terá atendimento em novembro, mês da Consciência
Negra, segundo Flávia. Ela agora vai trabalhar na Secretaria
Municipal de Direitos Humanos da capital.
Em
agosto, o secretário anunciou que o Estado vai criar uma delegacia policial
especializada em combate a crimes raciais e delitos de intolerância, a DECRADI,
com um grupo capacitado para realizar as investigações e os atendimentos com as
vítimas de crimes de ódio.
Ainda
há muito o que melhorar no atendimento, comenta Flávia Pinto: “Os casos de
intolerância ainda são interpretados pela polícia como brigas de vizinhos, aí a
pessoa não tem atendimento correto e os dados não são gerados’’.
Sobre
o problema orçamentário, o secretário acredita que a ação pode desafogar as
delegacias regionais que vão poder encaminhar para a especializada a
investigação. ‘‘Estamos falando de uma estrutura mais enxuta, a Secretaria de
Direitos Humanos disponibilizaria os técnicos de psicossocial pra fazer o
atendimento e ajudar nesse acolhimento das vítimas’’.
‘‘Infelizmente,
estamos vivendo um outro momento que traficantes estão perseguindo os
terreiros, a lógica agora é uma lógica territorial por conta desses
traficantes’’, diz o secretário. A violência por parte dos traficantes estimula
o aumento do número de casos não notificados e dificulta o trabalho da polícia.
‘‘No caso da mãe Carmen, foram quase 10 traficantes, segundo o relato dela. A
gente até acompanhou ela até a delegacia, mas ela não quis assinar o depoimento
por receio”, conta. Ele diz ainda que há uma sensação de impunidade por esses
casos não serem tratados com seriedade e notificados como intolerância
religiosa.
O
Delegado Henrique Pessoa, da 151º DP de Nova Friburgo, coordenou o Núcleo de
Combate a Intolerância da Polícia Civil que centralizava as informações de
ocorrências recebidas pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa. “Esse
assessoramento nas delegacias. A nossa função era devolver à polícia a
consciência da relevância da investigação. O problema não pode ser enfrentado
de uma forma banal. Mas, lamentavelmente, a polícia trabalha em condições
precárias, de forma inadequada.’’ O núcleo foi extinto em 2012, durante a
reestruturação da polícia civil, no governo de Sérgio Cabral (PMDB).
Mãe Elaine e Pai Márcio
Mãe
Elaine Dias Pereira, a mãe Elaine de Oxalá, mora em Nova Iguaçu há 30
anos — e há 30 anos sofre perseguição pela sua religião. Ela conta
que logo que começou a casa em Santa Rita, bairro de Nova Iguaçu, já colocaram
fogo nas colunas da casa. Ainda hoje, jogam constantemente pedras nas telhas.
Até dezembro do ano passado, ela nunca tinha feito uma denúncia ou registro de
ocorrência na delegacia. Mas, daquela vez, explodiram uma bomba no relógio de
luz do terreiro enquanto ocorria uma cerimônia religiosa. ‘‘Tinha muita gente,
muitos filhos aqui na casa, tinha criança, mulher grávida, e a explosão foi
assustadora, naquele momento da explosão a gente não tinha noção do que estava
acontecendo’’.
Ela
foi à delegacia da Posse (58º) para relatar o caso. ‘‘Para minha surpresa, fui
muito bem atendida e foi registrado como intolerância religiosa, foi uma
vitória, cheguei aqui feliz porque tinha conseguido fazer isso’’. Um inspetor
de polícia visitou a casa no dia seguinte. ‘‘O caso não foi adiante, não houve
uma investigação até o fim’’, conta. Depois do episódio, ela resolveu colocar
duas câmeras na frente do terreiro, o que inibiu as agressões.
Pai
Márcio Virginio também precisou colocar uma câmera no quintal de seu terreiro,
na Penha, Zona Norte no Rio de Janeiro, para identificar os autores das
pedradas e restos de lixo que são frequentemente jogados na Casa de Candomblé.
A Casa está aberta há três anos e, a partir do segundo ano, os ataques
começaram em dias certos, segunda-feira e sábado – sempre em momentos de
cerimônia. ‘‘As pedras vêm do prédio do lado, sendo que a câmera não é tão boa,
então vou gastar mais dinheiro pra comprar uma câmera melhor.’’ Além de quebrar
partes do telhado, os agressores já quebraram uma imagem do Caboclo, orixá
cultuado na casa. ‘‘Quando a gente vê uma imagem de santo quebrada eu fico pra
baixo, porque é a casa do nosso sagrado.’’
Foi
necessário colocar lona na parte aberta do quintal para que as pessoas não
fossem atingidas pelas pedras no momento das cerimônias religiosas. ‘‘Minha
casa tem muitos idosos, gente que vem com cadeira de roda. A pessoa já chega
com medo’’.
Pai
Márcio foi até a delegacia quando as agressões começaram a ficar mais
frequentes. “Na primeira vez não abriram o boletim de ocorrência. Só na segunda
vez’’. Ele conta que foi pelo menos 20 vezes à delegacia para fazer mais
denúncias. “Não fizeram nada”, diz.
Os
defensores da liberdade religiosa veem
uma ligação entre a inação da polícia e o preconceito. Ivanir dos Santos
argumenta que um passo ainda pendente seria a instituição do ensino da história
e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, segundo a Lei 10639. A culpa
é, também, do desconhecimento. “Não adianta colocar a conta só nos
neopentecostais porque não são só eles. Para a sociedade brasileira nós somos
feiticeiros, macumbeiros e do mal”, resume.
No
dia 27 de setembro, o Supremo Tribunal Federal autorizou ensino religioso
confessional nas escolas públicas – ou seja, as aulas podem seguir os ensinos
de religiões específicas. Para Ivanir dos Santos, o efeito da ação será
aumentar a discriminação e a perseguição às religiões afro-brasileiras. “Isso é
referendar o papel da igreja como elemento do estado, isso é igualzinho na
Colônia e no Império’’, comenta. Jayro concorda que o ensino religioso reforça
a dualidade entre o bem e mal. ‘‘As igrejas se sentem detentoras do bem, não só
da alma, mas da vida social. Então o ensino religioso nas escolas é um
incentivo a essa dualidade’’, comenta.
Sem
conhecer a religião, é difícil à sociedade entender a seriedade desses ataques.
Na visão de mundo africana, o assentamento dos orixás é uma espécie de
‘‘extensão do seu eu’’, da própria existência, explica o professor Jayro. “A
violência é muito mais vigorosa do que a gente imagina’’. Desrespeitar as
lideranças religiosas e os símbolos representativos de matriz africana, diz
ele, é entendido como uma forma de expulsão. Para muitas pessoas, depois da
destruição, é necessário se reconstruir em outro espaço físico.
Para
se reconstruir, Mãe Merinha contou com um mutirão de voluntários a limpar,
fisicamente, a sua casa varrida pelas chamas. Agora, prepara o ritual de
limpeza religiosa, com direito a preces para os Pretos Velhos. “Passamos por um
momento de grande intolerância religiosa em nosso país, que a cada dia se
agrava mais. Não sei se é de conhecimento de todos, mas o nosso espaço
infelizmente também veio a fazer parte dessa estatística de ódio”, escreveu aos
seus filhos.
Em
vários momentos da história brasileira, as religiões de matriz africana, cuja
essência teológica e filosófica é baseada nos valores civilizatórios
negroafricanos, sofreram repressão e foram tratadas como práticas primitivas e
profanas. Até a Constituição Imperial, promulgada em 1824, que concedeu certa
liberdade de culto aos não-católicos, foram alvo de perseguição do estado e
consideradas criminosas. Neste período, os negros-africanos escravizados só
podiam cultuar as divindades secretamente. A liberdade religiosa só passou a
ser considerada um direito fundamental com a Constituição de 1988.
‘‘Hoje,
o que o neopentecostalismo faz
com os terreiros, a Igreja Católica fez na Colônia e no Império. A destruição
dos terreiros tem essa lógica, de um passado que se presentifica’’, comenta o
professor Jayro de Jesus.
Os
mais de 130 anos de história do terreiro Ilè Așé Opò Afonjá, o mais antigo do Rio de Janeiro,
revelam a resistência do Candomblé. Dois anos antes da abolição da escravatura,
em 1886, mãe Eugênia Ana dos Santos, a mãe Aninha, se mudou de Salvador para a
região portuária e se instalou na Pedra do Sal. Após a abolição, a repressão
continuava, e polícia fazia prisões asseguradas pela Lei da Vadiagem.
A
Lei punia a manifestações negro-africanas, como a capoeira,
o samba e as
práticas religiosas. ‘‘Hoje, eles vão mudando de lugar para preservar esse
culto, assim como lá dentro da senzala’’, explica Sandra Brandão, 47 anos,
pedagoga e Presidente da Sociedade Civil do Ilè Așé Opò Afonjá do Rio – nome
que significa Casa de Força Sustentada por Xangô.
A
Casa passou por diversos locais antes de se instalar em São João de
Meriti, na Baixada Fluminense, para fugir da intolerância religiosa. ‘‘O
objetivo era se afastar dos grandes centros’’, conta a neta de Edgard Brandão,
que veio de Salvador com mãe Aninha. ‘‘E mesmo nesse endereço que estamos hoje,
também existia essa intolerância. Tenho uma tia biológica de 89 anos que conta
que quando criança, as crianças brincavam na frente da casa pra fazer barulho
pro candomblé poder tocar atrás pra polícia não coibisse essa manifestação.’’ As
prevenções continuam. Sandra diz que principalmente os mais idosos estão
amedrontados – e que o medo já causou um efeito psicológico. “Quando a gente
faz as práticas religiosas, a gente fala, olha o portão, tem que estar
fechado’’, conta.
A
maioria das Casas de Candomblé antigas no Rio de Janeiro continuam na Baixada
Fluminense, como o Terreiro Alákétú e a Casa Branca. Mãe Beata de Iemanjá
seguiu o mesmo caminho: foi de Salvador para o Rio em 1969 e fundou em 1985 o
terreiro Ilê Omiojuarô, em Miguel Couto, Nova Iguaçu. Reconhecida pela
militância em diversas causas, entre elas a liberdade religiosa, Mãe Beata
morreu em maio deste ano em Nova Iguaçu, onde ‘‘encontrou seus laços, suas
redes bem tecidas de apoio da população negra de terreiro’’, conta Pai Adailton,
filho biológico de Mãe Beata de Iemanjá.
Fonte. https://brasil.elpais.com
Comentários
Postar um comentário