Africa Brasil Identidades Positivas
Vale a pena ler de novo...sentir de novo!
Quem foi esta mulher que, 15 dias após o seu passamento para o Orun (céu, na língua ioruba), foi homenageada com um caruru, em pleno dia 27 de setembro, dia de São Cosme e São Damião, e que contou com a presença de mais de 100 amigos numa casa em Vila Isabel, Rio de Janeiro? A resposta pode ser captada por um dos relatos escritos por Katia Costa-Santos e Janete Ribeiro e lido coletivamente no evento. “Esse encontro acontece porque Zó vive em nossas mentes e corações. E seus sonhos – ilustrados pelos retalhos deixados ao longo de seus mais de trinta anos de lutas em prol de uma educação libertária – nos uniram na tarefa de tecermos colchas de retalhos que acalentem a nós e as outras e outros que nos ouçam, que nos vejam costurar esses mesmos sonhos-retalhos”.
Sim, Azoilda Loretto da Trindade (Azo ou Zó, como era carinhosamente chamada) teceu sonhos e retalhos ao longo da sua trajetória. E muitos deles foram concretizados em vida e podem ser considerados visionários. Azoilda lutou, por exemplo, para tecer a educação como um eixo primordial no contexto do movimento negro nos anos 1980. Segundo Janete Ribeiro, amiga por quase 30 anos, o grupo político o qual participavam buscava pensar práticas emancipatórias bem antes do decreto-lei nº 10.639 (que obriga o estudo da cultura africana e afro-brasileira nas escolas), aprovado em 2003.
“Entendíamos que a educação básica era fundamental. Não era formar uma elite negra, queríamos uma base com competência e coerência para conquistar a cidadania”, afirma Ribeiro, acrescentando que, na época, o movimento negro ainda não dava o lugar merecido ao tema educação. “A escola não era bandeira de luta do movimento negro, o que estava na frente era a politica, a saúde, entre outros”, diz.
Outra herança visionária deixada por Azoilda foi o projeto “Passeio Étnico”, cuja primeira edição aconteceu, em 1988, como parte da premiação de um concurso de redação Zumbi dos Palmares, para comemorar o Dia da Consciência Negra. Junto com a amiga Janete Ribeiro, organizaram um passeio sobre a história submersa do Rio de Janeiro. “Eram locais cuja historia ninguém sabia ou reconhecia. Visitamos as três irmandades: Santa Ifigênia e São Elesbão (na Rua da Alfândega); a Lampadosa (na Avenida Passos) e a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos (na Rua Uruguaiana). Fomos também ao que restou do Morro do Castelo (Ladeira da Misericórdia), Pedra do Sal e no Valongo”, relembra Ribeiro. Hoje o passeio étnico se tornou tema de dissertações e teses e também se transformou em disputada mercadoria para o turismo.
Mulheres negras
Foi em 1993 que surgiu o projeto “Diálogo Entre Povos”. O projeto foi transformado em pessoa jurídica, sem fins lucrativos, e serviu de base para inúmeros encontros, seminários e debates, no campo da educação, organizados por Azoilda e Janete, tais como o Fórum da Diversidade Humana, dentre outros. Em 1996, Azoilda foi convidada para ser a coordenadora pedagógica do Projeto A Cor da Cultura, da Fundação Roberto Marinho. “O Diálogo Entre Povos continuou. Fizemos até o ano passado e só paramos quando a Zó ficou doente. Ela sempre acreditou que a luta contra o racismo era maior do que o movimento negro, embora fosse uma militante do movimento. Acho que por isso ela foi se transformando numa referência para se pensar multiculturalismo”, conta Ribeiro.
Após o suicídio da intelectual negra Neusa Santos, no final de 2008, Zó passou também a organizar encontro das Rainhas Magas, no dia 6 de janeiro, em referência ao Dia de Reis. “Ela e outras mulheres negras ficaram muito impressionadas com a morte de Neusa e criaram este encontro como forma de troca e apoio mútuos”, afirma uma amiga que prefere não se identificar.
Zó fez sua passagem para o Orun no dia 13 de setembro passado. Filha de pais baianos, oriundos da classe média, nasceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) e, ainda bebê, foi morar em Salvador (BA). A mãe, Cecília Gonzaga da Trindade, era uma enfermeira andarilha, pois de tempos em tempos, era convocada a trabalhar ora no Rio de Janeiro, ora em Salvador.
A história da família Trindade, aliás, é bastante peculiar. O bisavô escravo aprendeu a ler sozinho e comprou a própria alforria vendendo sabão. Foi também com a venda do sabão que o bisavô comprou uma fazenda no interior da Bahia. O filho, que viria a ser o avô de Azoilda, tornou-se pecuarista e casou-se com uma branca. Até hoje a fazenda é propriedade da família Trindade.
Já o pai de Azoilda, embora na certidão de nascimento conste como desconhecido, todos sabiam quem era: Ubaldino Barbosa, médico-cirurgião bastante respeitado na Bahia. Nos períodos em que a mãe morou fora de Salvador, Zó foi criada pelas tias Glória e Grafira. O primo Renato Maria Trindade Lugli, hoje arquiteto, filho de Grafira, era considerado um irmão.
É Lugli quem traz na memória fatos importantes sobre a vida da Azoilda. Por exemplo, quase ninguém sabe que o nome Azoilda, embora diferente, nunca foi um problema para Zó. Pelo contrário. Era motivo de brincadeira entre os primos-irmãos. “Lembro de uma professora particular que perguntou uma vez a origem do nome dela e eu, como sempre gostei de história, disse ser em homenagem a uma princesa Viking que nunca existiu, mas a professora respondeu já ter lido bastante sobre a Grande Azoilda”, conta Renato. Ele também lembra o quanto Zó era introspectiva. “Neste sentido, era muito mais Barbosa [o pai] do que Trindade, pois a nossa família é mais extrovertida. Mas a Azo sempre foi uma visionária. E sempre gostou de agregar as pessoas, era extremamente solidária e cuidadora de uma maneira muito particular”.
Azoilda Loretto da Trindade era doutora em comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ), psicóloga e pedagoga por formação. Elegeu a educação como carro chefe da sua vida. Janete Ribeiro é quem melhor define a amiga: “Ela foi uma intelectual das brechas. No momento em que o cuidado e o carinho não eram uma questão para a academia, ela usou a pedagogia da sedução para isso. Ela radicalizou para tentar outra pedagogia, onde o diálogo com quem nos aproxima (e não com quem nos separa) é central. Mas não existe fórmula pronta. Precisa ser construído no diálogo horizontal (e não vertical). Como pensar isso coletivamente? Esse é o seu legado”, conclui Ribeiro.
A seguir, um dos muitos retalhos tecidos por Azoilda e uma de suas preciosas sementes dedicadas às mulheres negras. É também de uma pequena fração de quem foi Azoilda por ela mesma:
“[Tratem] de escrever, pois sua potência também está aí, e ao escrever [vão] partilhando, areando, arrumando, fortalecendo. [Escrevam], amigas! E não [esqueçam] de respirar com intento.”
Azoilda Loretto da Trindade
Por Angelica Basthi para o Portal Áfricas
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