Jornalista de Curitiba revela detalhes do massacre de 29 de abril


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(Imagem: Leandro Taques)
por Dimitri do Valle, Jornalistas Livres
A série de explosões começou a ser ouvida pouco antes das três da tarde. Quem estava a distâncias que chegavam a seis quilômetros, por exemplo, conseguia ter uma ideia clara de que as coisas no Centro Cívico, a praça dos três poderes do Paraná (mais a Prefeitura de Curitiba), não estavam para brincadeira. Os estrondos eram resultado da ação violenta de policiais militares contra servidores públicos, a maioria professores da rede estadual.
Há dois dias, eles protestavam contra uma série de medidas de arrocho que a Assembleia Legislativa começava a colocar em segunda e última votação naquele momento. No final da tarde, sabia-se que houve pelo menos 107 feridos — dois policiais e 105 servidores. O placar medonho retrata um verdadeiro massacre.
Já à noite, sabia-se que os feridos aumentaram para 150, segundo informações oficiais do SAMU. Oito deles seguiam em estado grave por causa de mordidas de cães policiais e tiros com balas de borracha.
Na segunda-feira, com o registro de escaramuças entre PMs e servidores, mas em escala menor do que a de hoje, o fatídico e já histórico 29 de abril, os deputados já haviam aprovado em primeira votação, por 31 votos favoráveis contra 21 o tal pacotaço, encaminhado pelo governador Beto Richa (PSDB) para melhorar as finanças do Estado, cujos balanços festejados por ele mesmo durante sua campanha à reeleição, no ano passado, apontavam para uma contabilidade em céu de brigadeiro.
Por mais de uma hora e meia, as bombas de gás e de efeito moral mostraram do lado de fora do parlamento estadual que eram a verdadeira garantia para a votação definitiva de hoje no interior do prédio, fazendo valer a vontade de Richa e de sua equipe de governo, comandada pelo baiano Mauro Ricardo Costa, importado pelo tucano para seu segundo mandato e já conhecido pelos serviços prestados na área fazendária da Prefeitura de de Salvador (BA), gestão de ACM Neto (DEM), e no governo de São Paulo, na gestão de José Serra (PSDB). A sessão prosseguia, sem final previsto, até a conclusão desta reportagem.
No entanto, à medida em que as bombas, os cães, as balas de borracha e os cassetetes caíam sobre os manifestantes armados apenas com gritos e palavras de ordem, deputados preocupados com a onda de violência que se desenrolava na praça principal, em frente a Assembleia, batizada de Nossa Senhora da Salete (trágica ironia), chegaram a sair do prédio para pedir calma aos policiais. A exemplo de servidores públicos feridos, com quem ficou lado a lado durante a confusão e barbárie generalizada na praça, o deputado Rasca Rodrigues, do PV, saiu no prejuízo e foi mordido por um dos cães da tropa de choque da PM, além de ter aspirado gás de pimenta e lacrimogênio. Voltou ao prédio com sangue escorrendo pelo braço.
Proibidos de se aproximar da Assembleia Legislativa por grades e um cordão humano de 1.500 policiais, a maioria deslocados de batalhões do interior e sem garantia de pagamento de suas diárias, restou aos manifestantes fazer o caminho de volta, diante da intensa repressão policial que se iniciou. Eles voltavam correndo em direção à avenida Cândido de Abreu, a principal via de ligação com o Centro Cívico. Não estavam sozinhos.
Muitos vinham carregando, como feridos da guerra campal, pelos braços e pernas, manifestantes desacordados e feridos.
O prédio mais próximo em que eles poderiam ficar à espera de socorro, foi a Prefeitura, comandada atualmente por Gustavo Fruet (PDT), atual desafeto de Richa, que lhe negou candidatura a prefeito, em 2012 pelo PSDB, vindo a se candidatar e ganhar o poder da capital, como azarão.
O hall de entrada e salas próximas, onde o IPTU e tributos municipais são cobrados, foram transformados em hospital de campanha. Vídeos de smartphones com os feridos deitados, sangrando e sem camisa passaram a ser veiculados na internet. Mesas de trabalho viraram maca, e as poucas que chegavam, apareciam por meio das escassas equipes do SAMU, que estavam em dificuldades para se aproximar do Centro Cívico, por conta do bloqueio policial de ruas próximas, e à multidão em fuga por calçadas e a avenida principal.
O expediente em toda a Prefeitura foi interrompido para que se desse cabo do atendimento aos feridos. Só ali foram acolhidos 35, muitos deles machucados no corpo, da cabeça aos pés, pelas balas de borracha das carabinas da tropa de choque e outros com dificuldade de respiração por inalação dos gases de dispersão, além dos atingidos de praxe pela força dos cassetetes. Testemunhas entre os manifestantes relataram ter visto um helicóptero com policiais atirando bombas em voos rasantes, no que seria o primeiro ataque aéreo feito contra seus próprios civis em território nacional.
Uma creche municipal que fica no Centro Cívico, a poucas quadras da praça onde a guerra prosseguia, testemunhou de dentro de suas paredes todo o terror protagonizado pelos policiais. Se a seis quilômetros, o barulho das bombas se fazia surpreender, como exposto no início deste relato, pode-se ter uma ideia da intensidade dos estrondos e do eco provocado dentro da creche infantil, exposta ao barulho das explosões e dos gritos dos manifestantes, apoiados por potentes carros de som, além do incômodo nauseante da fumaça dos gases de dispersão. O choro tomou conta das crianças, funcionários e professores, que não tinham a quem recorrer, restando torcer para que tudo terminasse o mais breve possível, o que não aconteceu.
Do ponto de vista militar, a polícia cumpriu, mesmo com o uso de força excessiva, a missão de deixar afastados da Assembleia os manifestantes, o que não havia conseguido em fevereiro, quando Richa tentou colocar o pacotaço em votação pela primeira vez, ocasião em que foi rechaçado pela presença de 20 mil manifestantes e um mês de greve dos professores, a maior categoria de servidores do Estado, com 50 mil profissionais. Naquela ocasião, os deputados da bancada governista tiveram que entrar na Assembleia dentro de um vetusto e gigante camburão policial de cor preta. Tentaram encaminhar a votação do restaurante da assembleia, pois o plenário havia sido ocupado, mas tiveram medo da reação dos manifestantes e adiaram o intento.
Como se percebe, era questão de tempo para Richa assimilar o recuo, reorganizar a tropa, tanto a da fiel Assembleia, como a das balas, bombas e porretes, para fazer valer seu projeto que tira vários direitos do funcionalismo, como o corte de licenças de parte dos professores, o livre uso de recursos dos fundos estaduais, inclusive o do poder Judiciário, aumento da alíquota do ICMS de mais de 90 mil produtos, e mudanças no setor de previdência dos servidores, que os obrigarão a pagar um índice extra caso queiram manter seus salários integrais acima de R$ 4,6 mil.
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(Imagem: Leandro Taques)
O preço político a ser pago para os principais atores do episódio, como Richa e seus colaboradores no governo e na Assembleia, ainda é tão nebuloso e maleável quanto a fumaça de cor branca das bombas que tomou conta do Centro Cívico e fartamente captada pelos celulares dos prédios próximos.
Antes que o leitor estranhe esse direcionamento nessa parte do texto, um pouco de história recente da política local. Em 30 de agosto de 1988, a PM reprimiu no mesmo Centro Cívico, um protesto de professores da rede estadual, no então governo de Álvaro Dias, na época no PMDB, e hoje senador filiado ao PSDB. Muitos decretaram o fim de sua carreira política, marcado pelo pisoteio da cavalaria em professores desarmados, mas Álvaro segue firme na lida. Tirando duas derrotas circunstanciais ao governo paranaense, contra Jaime Lerner, em 1994, a novidade política daquele ano, e Roberto Requião, em 2002, apoiado por nada menos do que o presidente Lula, o bamba da vez, Dias é o senador com mais mandatos eleitos. Ganhou, por exemplo, com ampla folga mais oito anos em 2014. Já havia sido eleito em 2006 e em 1998, portanto, depois da pancadaria de 88.
Richa tem um destino mais incerto, mas nem por isso menos favorável. Richa encarna o antiesquerdismo visceral de boa parte do eleitorado paranaense atual. Com o tempo, como todo político, pode ser beneficiado pela diluição natural do episódio dantesco, assim como aconteceu com Álvaro Dias. A diferença é que, pelo tamanho do massacre e sua presença constante na internet (ferramente inexistente na época de Álvaro), Richa poderá passar o que resta do seu segundo mandato tentando explicar os “comos” e “por ques” de tanta violência contra profissionais da Educação. E mais: boa parte da população paranaense, assim como a brasileira, ainda marca sua rotina diária em frente à televisão pelo noticiário das emissoras de sinal aberto. Nesta noite, Richa pode ser beneficiado ou não pelos filtros editoriais e critérios supostamente jornalísticos (“não abusar das imagens, tem muita criança assistindo neste momento”, pode ser um deles, sim) lançados à mão por editores e cúpulas das emissoras.
A administração de Richa enfrenta também profunda investigação sobre supostos pagamentos de propina a servidores da Receita Estadual de Londrina, no Norte do Paraná, sua cidade natal, por empresas pressionadas a se verem livres de qualquer fiscalização e cobrança dos agentes do fisco. Um dos jornalistas mais premiados do Brasil, ao investigar o caso, teve que sair da cidade, pois recebeu a informação que seria morto em falso assalto a uma churrascaria que frequentava. O primo de Richa, Luiz Abi, é suspeito de estar por trás de fraudes de licitação para consertos de carros do governo, assunto que o jornalista ameaçado, James Alberti, da afiliada da Globo, no Paraná, também investigava em Londrina. Abi foi preso, a pedido do Ministério Público, mas atualmente responde ao processo de suspeita de corrupção em liberdade.
Beto Richa é filho de José Richa (morto em 2003). Richa pai teve papel de destaque na época da redemocratização, quando Tancredo Neves foi eleito presidente da República, no colégio eleitoral de janeiro de 1985. Se os militares da linha dura decidissem impedir a posse ou não reconhecessem o resultado da eleição indireta feita no Congresso Nacional, Richa pai havia se comprometido a participar de um plano para abrigar Tancredo no Paraná e resistir contra uma eventual tentativa de golpe, colocando a sua Polícia Militar, para proteger o novo presidente civil. Hoje, trinta anos depois, a mesma corporação, sob o desígnio de outro Richa, faz o caminho inverso, o da violência desenfreada, sem qualquer ligação com as garantias democráticas tão defendidas pelo próprio pai, como ficou explícito na tarde desse 29 de abril, marcada pelo frio e garoa que caiu no centro do poder da Capital do Paraná.

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