Niemeyer global

 

A morte de Oscar Niemeyer é tratada pela imprensa brasileira sob um ângulo em particular: grande parte dos elogios ao "gênio" vêm do fato de ter contribuído para a glorificação do Brasil no estrangeiro. É verdade que isso ocorreu, ampla e continuadamente. Mas a ênfase posta aí revela as dinâmicas persistentes de um complexo.
O telenoticiário Jornal da Globo, ainda na noite de quinta-feira (5/12), gastou mais da metade do tempo dedicado a Niemeyer mostrando a circulação internacional do arquiteto, recortando obituários e manchetes várias, pinçadas de jornais da Europa e do Mundo. As repercussões de primeira hora homenageavam o demiurgo em diversas línguas. Nada de mais, apenas notícias: "Morre Oscar Niemeyer", "Oscar Niemeyer morre". Para a Globo, eram confirmações de alguma coisa.
O crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes já havia tematizado o problema falando, nos anos de 1960, sobre os "carmas" de um país cuja autovalorização, em geral, exige primeiramente um reconhecimento no exterior e pelo exterior. Na linha do "yes we can" (adotado também por Lula e explorado pelo marketing político do ex-presidente), a Globo valeu-se de um video de Oscar, antigo, no qual o artista dizia algo assim: "isso [meus projetos] é tudo para mostrar que nós também podemos fazer as coisas". A frase, de evidente acerto e pertinência, caiu como uma luva para os propósitos de William Waack: montar a narrativa de uma personagem heroica, que furou a marginalização internacional da produção artística brasileira e foi aceita como igual por seus colegas europeus e norte-americanos. É a narrativa "padrão global": a mesma da qual a emissora se valeu para o necrológio de Tom Jobim, há exatos 18 anos. Mas, a essa altura do campeonato, ainda temos dúvida sobre podermos ou não podermos fazer as coisas? Parece que sim. Pois como diria o mestre Hegel, aquele das dialéticas estranhas, onde há muita afirmação, na verdade existe muita incerteza.
A importância de Oscar Niemeyer para a cultura brasileira é muito maior do que servir às conveniências do ufanismo mordaz. Afinal, Niemeyer amou e divulgou o Brasil, largamente, mas foi também um grande crítico das nossas iniquidades cínicas e obtusas. Nessa linha, a Globo mostrou, por exemplo, o período de exílio do arquiteto, seguido ao golpe militar de 1964. Mas o fez com um certo comedimento. Na seleção de alguns trechos de arquivo, exibiu um pequeno fragmento no qual o otimismo marcante do arquiteto frisava os efeitos positivos do seu próprio banimento sobre a intensificação de sua atuação fora do Brasil.
O trecho, que talvez estivesse ali para mostrar o lado bom das coisas ruins, encalacrou a narrativa do telejornal em uma espécie de paradoxo. Para se ter uma ideia da encrenca, basta pensar no caso de outros conterrâneos cuja carreira doméstica foi prejudicada pelo golpe, e cuja circulação internacional foi extremamente favorecida pela necessidade de exilar-se: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e assim por diante. Há muitos outros nomes a serem postos numa lista dessas. À medida que o tempo passa, é cada vez mais retumbante a quantidade de brasileiros brilhantes e inventivos que o regime militar de 64-85 "botou para correr". Alguns deles, como Niemeyer, foram capazes de refazer suas vidas impulsionados por uma força interior a toda prova. Quanto a isso, não resta dúvida no caso do homenageado: ninguém vive 104 anos sem dispor de uma energia acima da média e de grande interesse pela vida. Se algo ainda paira como pergunta, não é se podemos ou não podemos fazer as coisas, mas sim "quando vamos fazê-las?". Quando seremos capazes de organizar cidades menos estúpidas e truncadas e "por que não o fazemos?". Criatividade e talento já temos, há décadas.
No caso específico de Oscar Niemeyer, por fim, a importância de um reconhecimento "de fora para dentro" não é pertinente nem sequer como cronologia. Embora fosse internacionalmente conhecido desde já os anos de 1930, Niemeyer gozou de bastante prestígio interno antes de ingressar para valer no star system da arquitetura mundial, sob a égide da mirabolante construção de Brasília. Sua contribuição fundamental para o país — e para o Mundo — está no fato de ter imaginado e erguido sínteses plásticas improváveis. Sua fama internacional é apenas uma decorrência desta originalidade intrigante, observada e admirada. Essa fama é o que menos importa. Mas não para a Rede Globo. No programa de Waack e Pelajo, sobrou exaltação. Faltou Brasil, faltou arquitetura e, sobretudo, faltou Niemeyer.
obra de construção do Congresso Nacional. Brasília, 1957 (© Ap Images)
a ideologia dos "anos dourados"Muito melhor do que Waack foi o "tropicalista" Gilberto Gil, que — em artigo para O Estado de S. Paulo ontem (6/12) — aproveitou a ocasião para enaltecer o antigo prédio do Ministério da Educação e Saúde, hoje pertencente ao Ministério da Cultura, no centro do Rio de Janeiro. Em seus tempos de ministro, Gil despachou ali, diversas vezes, por gosto e por gesto.
Obra coletiva com a participação destacada de Oscar Niemeyer, erguida no início dos anos de 1940, o prédio do Ministério é um marco da moderna arquitetura brasileira e não foi mencionado em nenhuma das entradas do Jornal da Globo. Supressão? Ignorância? Compreensível?
Aos olhos de um brasileiro médio, Brasília é claramente um milagre embotante: um milagre da política, um milagre da técnica, um milagre de várias ordens. Embora não consensuais, sua força e beleza são evidentes. O "nó da madeira" é que Brasília é também um fato social muito adequado à fabricação da ideia de que o Brasil dos anos 1950 foi um tempo de harmonias inéditas e nunca mais repetidas. Por isso, Brasília vem sempre em primeiro plano: não apenas por ser impressionante, gigantesca, faraônica.
A ideologia dos "anos dourados" é montada às custas de um saudosismo enorme, mas está aí e tem sua força. É uma força inclusive produtiva: é um dado da nossa cultura. Claro, para sustentar a tese dos "anos dourados", no caso específico da Brasília, é preciso não saber que a "nova capital" foi erguida debaixo dos gritos histéricos de Gustavo Corção e da direita venenosa de Carlos Lacerda, para quem o canteiro do cerrado era apenas um capricho egocêntrico de JK e seus amigos. É preciso não saber que JK quase não assumiu a Presidência, que quase foi vítima de um golpe de estado no final do primeiro ano de seu mandato. É preciso não saber que Vargas suicidou-se em 1954, em meio a um dos mais esquisitos e mal esclarecidos complôs políticos da nossa história. É preciso não saber que havia demandas sociais gritantes, que havia greves, que a "paz aparente" do país era constantemente ameaçada pelos desejos de ruptura institucional udenistas. De todo modo, como a história de Brasília teve o seu "final feliz", esquecemos de tudo isso. O ensino colegial de história ignora esses pormenores, que engrandeceriam ainda mais os feitos de Niemeyer, Costa, Kubitschek & Cia. É incrível pensar que tenham feito tudo aquilo com o conservadorismo do latifúndio pronto a morder-lhes a canela.
Ministério da Educação e Saúde
Para o prédio do MES, porém, a sina é diferente daquela de Brasília: um "reles" edifício público funcional "perdido" no centro do Rio de Janeiro não tem o poder de chocar e encantar por si só, muito menos a quem não dispõe de repertório cultural e arquitetônico especializado. Por outro lado, também resta observar o quão incomôda parece a ideia de que algo da moderna revolução cultural brasileira possa ter suas raízes no período Vargas, e não tenha brotado diretamente em JK, como emanação de charme. Afinado com essa "recusa", mesmo que brandamente, o Niemeyer de William Waack "nasceu" com a Pampulha, em 1943. Trocando em miúdos: sempre que é instada a recapitular a história do ciclo virtuoso de inovação e criatividade do Brasil dos anos 1950, a Rede Globo começa a contá-la do "meio para o fim". Mas isso são longas conversas, para muitas outras horas.
Fonte. Yahoo

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CANCRO MOLE