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domingo, 5 de abril de 2009

O Cão Sem Plumas

João Cabral de Melo Neto

A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada.

O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão.

Aquele rio era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água.

Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos povos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespos como um negro.

Liso como o ventre de uma cadela fecunda, o rio cresce sem nunca explodir. Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver (como ferve o pão que fermenta). Em silêncio, o rio carrega sua fecundidade pobre, grávido de terra negra.

Em silêncio se dá: em capas de terra negra, em botinas ou luvas de terra negra para o pé ou a mão que mergulha.

Como às vezes passa com os cães, parecia o rio estagnar-se. Suas águas fluíam então mais densas e mornas; fluíam com as ondas densas e mornas de uma cobra.

Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e abafada) por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação dos palácios cariados, comidos de mofo e erva-de-passarinho. Algo da estagnação das árvores obesas pingando os mil açucares das salas de jantar pernambucanas, por onde se veio arrastando.

(É nelas, mas de costas para o rio, que “as grandes famílias espirituais” da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa. Na paz redonda das cozinhas, ei-las a revolver viciosamente seus caldeirões de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Por que parecia aquela uma água madura? Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas?

Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?

(O cão sem plumas, 1949-1950)